Nestes últimos dias de Maio que hoje finda, um siroco de má
casta varreu Portugal de lés a lés. As temperaturas subiram a graus proibitivos
nos termómetros e a Direcção-Geral de Saúde começou a difundir aos velhos as
recomendações do costume: roupas leves, claras, e muitos líquidos, de
preferência água. Eu assim fiz. Pus-me em calções e vá de emborcar copos de
água uns atrás dos outros. Às tantas disse para comigo: ainda vou ficar
hidrópico, E para que tal me não acontecesse, fui misturando água e vinho na
proporção recomendada por Horácio, que foi tão bom cultor das Musas como das
uvas, prenda que já lhe valeu, da parte dum abstémio da família dos aquae potoribus, que é como o autor da Arte Poética apelida os poetas sem
estro, o apodo de bêbado. Quem, a
pretexto de combater o calor, ia ficando bêbado, fui eu.
Como toda a gente reconhece e lamenta, o Porto é uma cidade
doentia. Húmida, enevoada, tóxica. Um foco de doenças respiratórias e
articulares. Nestes últimos dias de Maio, então, nem queiram saber. Lembrava
Pompeia de há mil, novecentos e tal anos, horas antes de começarem a cair sobre
ela as lavas do Vesúvio. Um sopro de fornalha, um céu de cinza, um sol de
eclipse. De fugir. Foi o que eu fiz. Após uma noite em claro, palpitações e faltas
de ar, meti-me no carro e pus-me ao fresco em direcção a Barroso.
Saí da Cidade da Virgem ainda com o sol brando. Mas ao
atravessar Braga, já ele prometia os quarenta graus previstos pelos
meteorologistas. À vista da Serra do Gerês, respirei fundo. Como os montes
estão bonitos! Que abundância e variedade de cores! Que estupendas manchas de
amarelo pelas encostas! São as giestas, nesta altura do ano, no melhor da vida.
Eu gosto do amarelo. Não por causa das giestas, mas dumas fitas que, em tempo
de ingénuas ilusões jamais concretizadas, passeei por Coimbra.
Fiz o resto da viagem a pensar em giestas.
No meu tempo de rapaz, com todos os terrenos cultivados, não
havia giestas amarelas em Peireses. Agora, com a maioria deles de pousio,
invadem tudo. Para além de nos encherem os olhos de amarelo durante quinze dias
por ano, que outra serventia terão elas? A de competir com as silvas,
provavelmente.
Há quem diga que dão boa lenha. À minha lareira nunca foram.
Por isso me não pronuncio. Uma coisa me parece clara. Para vassoiras, a giesta
branca é melhor. Disso tenho eu experiência. Quando pastor, e por ordem de
minha mãe, fartei-me de fazer vassoiras de giesta. Muito mal feitinhas, verdade
seja dita. Para vassoiras de giesta, não havia como a Dolotéria do Cortiço.
Dolotéria! Que raio de nome… E sabem quem lho pôs? O padre de Cervos, a cuja
paróquia o Cortiço pertence. Quando lhe apareciam filhos ilegítimos para
baptizar, estigmatizava-os com nomes estapafúrdios. Que culpas teriam as
crianças do pecado dos pais? Quem no…
Voltando à Dolotéria. Como filha de cabaneira, era
extremamente pobre. E para não morrer à fome, especializou-se em vassoiras de
giesta.
As vassoiras da Dolotéria eram autênticas obras de arte.
Cabos altos, fortemente enleados com raízes de carqueja, copas redondas,
aparadas a tesoira. Faziam bom serviço e duravam uma eternidade. Por isso eram
muito apreciadas pelas donas de casa.
A Dolotéria tinha amigas em Peireses. De vez em quando aparecia
com uma braçada de vassoiras e presenteava-as. Estas retribuíam o presente com
um naco de broa ou de carne, uma cesta de batatas, uma chouriça, uma gabela de
couves da horta. Outros tempos, outros usos. Hoje já ninguém usa vassoiras de
giesta e é pena.
Disso mesmo se lamentava a Ana do Pinto, recentemente
falecida com noventa e muitos anos, quando, uma tarde, em amena conversa
comigo, me dizia, num tom de espanto e censura:
– Oh, rapaz! Estas putas de agora até as vassoiras compram…
A pensar em giestas e vassoiras cheguei ao Alto de
Ortigueira, donde se avista Peireses. Com a devoção com que outrora os
peregrinos pedestres à Terra Santa, à vista de Jerusalém, ajoelhavam, parei,
saí do carro e descobri-me. Sabedoras do quanto eu gosto de as ouvir, as
cotovias acorreram a saudar-me. Uma aragem fresca e perfumada envolveu-me todo
o corpo numa sensação de bem-estar celestial. Que diferença entre este paraíso
e o inferno do Porto. Enchi o peito de ar e murmurei: «Deus te salve, terra
abençoada!»
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 91 e ss.)
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