domingo, 21 de julho de 2013

DEUS TE SALVE, TERRA ABENÇOADA

Nestes últimos dias de Maio que hoje finda, um siroco de má casta varreu Portugal de lés a lés. As temperaturas subiram a graus proibitivos nos termómetros e a Direcção-Geral de Saúde começou a difundir aos velhos as recomendações do costume: roupas leves, claras, e muitos líquidos, de preferência água. Eu assim fiz. Pus-me em calções e vá de emborcar copos de água uns atrás dos outros. Às tantas disse para comigo: ainda vou ficar hidrópico, E para que tal me não acontecesse, fui misturando água e vinho na proporção recomendada por Horácio, que foi tão bom cultor das Musas como das uvas, prenda que já lhe valeu, da parte dum abstémio da família dos aquae potoribus, que é como o autor da Arte Poética apelida os poetas sem estro, o apodo de bêbado. Quem, a pretexto de combater o calor, ia ficando bêbado, fui eu.
Como toda a gente reconhece e lamenta, o Porto é uma cidade doentia. Húmida, enevoada, tóxica. Um foco de doenças respiratórias e articulares. Nestes últimos dias de Maio, então, nem queiram saber. Lembrava Pompeia de há mil, novecentos e tal anos, horas antes de começarem a cair sobre ela as lavas do Vesúvio. Um sopro de fornalha, um céu de cinza, um sol de eclipse. De fugir. Foi o que eu fiz. Após uma noite em claro, palpitações e faltas de ar, meti-me no carro e pus-me ao fresco em direcção a Barroso.
Saí da Cidade da Virgem ainda com o sol brando. Mas ao atravessar Braga, já ele prometia os quarenta graus previstos pelos meteorologistas. À vista da Serra do Gerês, respirei fundo. Como os montes estão bonitos! Que abundância e variedade de cores! Que estupendas manchas de amarelo pelas encostas! São as giestas, nesta altura do ano, no melhor da vida. Eu gosto do amarelo. Não por causa das giestas, mas dumas fitas que, em tempo de ingénuas ilusões jamais concretizadas, passeei por Coimbra.
Fiz o resto da viagem a pensar em giestas.
No meu tempo de rapaz, com todos os terrenos cultivados, não havia giestas amarelas em Peireses. Agora, com a maioria deles de pousio, invadem tudo. Para além de nos encherem os olhos de amarelo durante quinze dias por ano, que outra serventia terão elas? A de competir com as silvas, provavelmente.
Há quem diga que dão boa lenha. À minha lareira nunca foram. Por isso me não pronuncio. Uma coisa me parece clara. Para vassoiras, a giesta branca é melhor. Disso tenho eu experiência. Quando pastor, e por ordem de minha mãe, fartei-me de fazer vassoiras de giesta. Muito mal feitinhas, verdade seja dita. Para vassoiras de giesta, não havia como a Dolotéria do Cortiço. Dolotéria! Que raio de nome… E sabem quem lho pôs? O padre de Cervos, a cuja paróquia o Cortiço pertence. Quando lhe apareciam filhos ilegítimos para baptizar, estigmatizava-os com nomes estapafúrdios. Que culpas teriam as crianças do pecado dos pais? Quem no…
Voltando à Dolotéria. Como filha de cabaneira, era extremamente pobre. E para não morrer à fome, especializou-se em vassoiras de giesta.
As vassoiras da Dolotéria eram autênticas obras de arte. Cabos altos, fortemente enleados com raízes de carqueja, copas redondas, aparadas a tesoira. Faziam bom serviço e duravam uma eternidade. Por isso eram muito apreciadas pelas donas de casa.
A Dolotéria tinha amigas em Peireses. De vez em quando aparecia com uma braçada de vassoiras e presenteava-as. Estas retribuíam o presente com um naco de broa ou de carne, uma cesta de batatas, uma chouriça, uma gabela de couves da horta. Outros tempos, outros usos. Hoje já ninguém usa vassoiras de giesta e é pena.
Disso mesmo se lamentava a Ana do Pinto, recentemente falecida com noventa e muitos anos, quando, uma tarde, em amena conversa comigo, me dizia, num tom de espanto e censura:
– Oh, rapaz! Estas putas de agora até as vassoiras compram…
A pensar em giestas e vassoiras cheguei ao Alto de Ortigueira, donde se avista Peireses. Com a devoção com que outrora os peregrinos pedestres à Terra Santa, à vista de Jerusalém, ajoelhavam, parei, saí do carro e descobri-me. Sabedoras do quanto eu gosto de as ouvir, as cotovias acorreram a saudar-me. Uma aragem fresca e perfumada envolveu-me todo o corpo numa sensação de bem-estar celestial. Que diferença entre este paraíso e o inferno do Porto. Enchi o peito de ar e murmurei: «Deus te salve, terra abençoada!»

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 91 e ss.)

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