Vim para a aldeia com
o sentido nos cogumelos.
Entendamo-nos. Para mim, os cogumelos são apenas um pretexto para ir por esses
campos fora e encher o peito de ar, os olhos de beleza e os ouvidos de
silêncio. Mas tive uma pequena contrariedade. Encontrei chuva. Não é que eu não
goste de ver chover. Após um ano de seca, é um refrigério de alma vê-la cair.
Mas andar nos campos à chuva não é nada agradável. E eu tenho um medo das
constipações que me pelo.
Impossibilitado de ir
aos níscaros,
fechei-me em casa. E agora aqui estou eu de pés ao lume e pensamento de nariz
no ar como perdigueiro no rasto das perdizes. O primeiro assunto em
que se fixa, ou marra, é nas últimas eleições autárquicas.
Todos os dias ouço nas
televisões ou leio nos jornais comentadores políticos tão sagazes, que basta
eles abrirem a boca para um homem ficar a saber que leram Platão e Maquiavel e bebem do fino.
Invejo-lhes a perspicácia e tenho pena de não ter relações pessoais com nenhum
deles, ou delas, dado que também há por aí comentadoras políticas que é um
regalo vê-las e ouvi-las. Porque se as tivesse, pedir-lhes-ia ajuda para uma
análise científica à evolução do fenómeno político em Barroso.
Lembro-me de ouvir
contar aos velhos da minha infância histórias do arco-da-velha, umas
hilariantes outras tristes, da galopinagem dos tempos da Monarquia e da
Primeira República.
Hilariantes, pelo
ridículo dos altos senhores da Vila, que desciam dos seus altos castelos, e
andavam de porta em porta, de chapéu na mão, a mendigar votos como quem pede
para a casa ardida; tristes pela bacoquice de lavradores abastados que se arruinaram
por causa da política.
Com a ditadura, tudo
isso desapareceu. Os presidentes das câmaras e das juntas de freguesia,
passaram a ser nomeados pelo governo. Os partidos políticos, proibidos. O povo
deixou de ter opinião – se é que alguma vez a havia tido.
É certo que se manteve
a farsa das eleições para a Presidência da República e para a Assembleia
Nacional. Mas quem ligava a isso?
A farsa acontecia
sempre a um domingo, depois da missa na igreja matriz. Vinha um delegado do sr.
Presidente da Câmara. Para que todos vissem que estava ali uma pessoa
importante, o sr. abade convidava-o para a capela-mar e cedia-lhe a cadeira
episcopal. Depois, durante a prédica, tecia largos elogios a Salazar, o «Salvador
da Pátria», e lembrava o sagrado dever que todos tínhamos de votar nele. Que
ninguém se escusasse a passar pela mesa de voto.
Mas os paroquianos,
que eram quase todos de longe, mal acabava a missa, corriam para casa ao cheiro
dumas batatas cozidas perfumadas com uma rodela de chouriço do boche. E o tal
enviado de Deus, perdão, de Salazar, via-se em palpos de aranha para conseguir
três indivíduos que lhe assinassem a acta. Depois descarregava os cadernos.
Votavam vivos e mortos. Os tais «defuntos e ausentes» de quem Luís de Camões
foi «Provedor» em Macau.
O 25 de Abril
restituiu os partidos políticos ao povo. E o povo ficou perplexo.
– Então quem é que,
agora, representa Salazar e a Santa Religião? – perguntava a velha Inocência à
sua comadre Zefa.
– Os da direita,
comadre.
– E quem são eles?
– Os do PSD.
– Está bem então.
E as duas comadres
passaram a votar invariavelmente no PSD.
Mas o mundo dá muita
volta, e, nas últimas eleições autárquicas, apareceu um neto da Zefa a
concorrer à Junta de Freguesia na lista do PS. A velhota sentiu-se na obrigação
de apoiar o neto. Foi ter com a Inocência e disse-lhe:
– Comadrinha, desta
vez temos de votar no PS.
– Ai Jesus! E isso não
será pecado?
– Que pecado que nada.
O rapaz sempre foi um bom católico e defensor da Santa Religião. Mesmamente, já
pensou nas vantagens de termos um neto meu na Junta? Fazemos dele o que
quisermos…
– Tem razão,
comadrinha. Conte com o meu voto.
O PS ganhou. A Zefa
foi ter com a Inocência e disse-lhe:
– Venha merendar
comigo.
– Hoje não, comadre.
Ando sem apetite.
– Deixe-se de
cerimónias. Tenho lá uma garrafinha dos Três
Velhotes e uma tigela de marmelada do ano passado. Venha daí, não seja
tola.
A Inocência foi.
As duas comadres
entraram alegremente a fundo no Porto e na marmelada. Pareciam duas colegiais
em férias. Às tantas, só para a ouvir, diz a Zefa:
– Estou desconfiada
que a comadre não votou no PS?
– Ó Comadre? Ouvir
isso é como levar uma bofetada. Só por mar de si é que eu era capaz de fazer
uma coisa dessas. Até já me fui confessar.
– Ai sim? E que lhe
disse o padre?
– Oh, criatura de
Deus! Então você comete um pecado desses? Eu nem a devia absolver. Mas como
vejo que está arrependida e se me promete nunca mais negar o voto ao PSD?
– Juro!
– Está perdoada. Vá em
paz e não volte a pecar.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 70 e ss.)
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