quarta-feira, 3 de julho de 2013

AS DUAS COMADRES

Vim para a aldeia com o sentido nos cogumelos. Entendamo-nos. Para mim, os cogumelos são apenas um pretexto para ir por esses campos fora e encher o peito de ar, os olhos de beleza e os ouvidos de silêncio. Mas tive uma pequena contrariedade. Encontrei chuva. Não é que eu não goste de ver chover. Após um ano de seca, é um refrigério de alma vê-la cair. Mas andar nos campos à chuva não é nada agradável. E eu tenho um medo das constipações que me pelo.
Impossibilitado de ir aos níscaros, fechei-me em casa. E agora aqui estou eu de pés ao lume e pensamento de nariz no ar como perdigueiro no rasto das perdizes. O primeiro assunto em que se fixa, ou marra, é nas últimas eleições autárquicas.
Todos os dias ouço nas televisões ou leio nos jornais comentadores políticos tão sagazes, que basta eles abrirem a boca para um homem ficar a saber que leram Platão e Maquiavel e bebem do fino. Invejo-lhes a perspicácia e tenho pena de não ter relações pessoais com nenhum deles, ou delas, dado que também há por aí comentadoras políticas que é um regalo vê-las e ouvi-las. Porque se as tivesse, pedir-lhes-ia ajuda para uma análise científica à evolução do fenómeno político em Barroso.
Lembro-me de ouvir contar aos velhos da minha infância histórias do arco-da-velha, umas hilariantes outras tristes, da galopinagem dos tempos da Monarquia e da Primeira República.
Hilariantes, pelo ridículo dos altos senhores da Vila, que desciam dos seus altos castelos, e andavam de porta em porta, de chapéu na mão, a mendigar votos como quem pede para a casa ardida; tristes pela bacoquice de lavradores abastados que se arruinaram por causa da política.
Com a ditadura, tudo isso desapareceu. Os presidentes das câmaras e das juntas de freguesia, passaram a ser nomeados pelo governo. Os partidos políticos, proibidos. O povo deixou de ter opinião – se é que alguma vez a havia tido.
É certo que se manteve a farsa das eleições para a Presidência da República e para a Assembleia Nacional. Mas quem ligava a isso?
A farsa acontecia sempre a um domingo, depois da missa na igreja matriz. Vinha um delegado do sr. Presidente da Câmara. Para que todos vissem que estava ali uma pessoa importante, o sr. abade convidava-o para a capela-mar e cedia-lhe a cadeira episcopal. Depois, durante a prédica, tecia largos elogios a Salazar, o «Salvador da Pátria», e lembrava o sagrado dever que todos tínhamos de votar nele. Que ninguém se escusasse a passar pela mesa de voto.
Mas os paroquianos, que eram quase todos de longe, mal acabava a missa, corriam para casa ao cheiro dumas batatas cozidas perfumadas com uma rodela de chouriço do boche. E o tal enviado de Deus, perdão, de Salazar, via-se em palpos de aranha para conseguir três indivíduos que lhe assinassem a acta. Depois descarregava os cadernos. Votavam vivos e mortos. Os tais «defuntos e ausentes» de quem Luís de Camões foi «Provedor» em Macau.
O 25 de Abril restituiu os partidos políticos ao povo. E o povo ficou perplexo.
– Então quem é que, agora, representa Salazar e a Santa Religião? – perguntava a velha Inocência à sua comadre Zefa.
– Os da direita, comadre.
– E quem são eles?
– Os do PSD.
– Está bem então.
E as duas comadres passaram a votar invariavelmente no PSD.
Mas o mundo dá muita volta, e, nas últimas eleições autárquicas, apareceu um neto da Zefa a concorrer à Junta de Freguesia na lista do PS. A velhota sentiu-se na obrigação de apoiar o neto. Foi ter com a Inocência e disse-lhe:
– Comadrinha, desta vez temos de votar no PS.
– Ai Jesus! E isso não será pecado?
– Que pecado que nada. O rapaz sempre foi um bom católico e defensor da Santa Religião. Mesmamente, já pensou nas vantagens de termos um neto meu na Junta? Fazemos dele o que quisermos…
– Tem razão, comadrinha. Conte com o meu voto.
O PS ganhou. A Zefa foi ter com a Inocência e disse-lhe:
– Venha merendar comigo.
– Hoje não, comadre. Ando sem apetite.
– Deixe-se de cerimónias. Tenho lá uma garrafinha dos Três Velhotes e uma tigela de marmelada do ano passado. Venha daí, não seja tola.
A Inocência foi.
As duas comadres entraram alegremente a fundo no Porto e na marmelada. Pareciam duas colegiais em férias. Às tantas, só para a ouvir, diz a Zefa:
– Estou desconfiada que a comadre não votou no PS?
– Ó Comadre? Ouvir isso é como levar uma bofetada. Só por mar de si é que eu era capaz de fazer uma coisa dessas. Até já me fui confessar.
– Ai sim? E que lhe disse o padre?
– Oh, criatura de Deus! Então você comete um pecado desses? Eu nem a devia absolver. Mas como vejo que está arrependida e se me promete nunca mais negar o voto ao PSD?
– Juro!
– Está perdoada. Vá em paz e não volte a pecar.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II – Crónicas de Barroso (p. 70 e ss.)

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