quarta-feira, 31 de outubro de 2012

De Profundis, Valsa Lenta [8]


“Sai depressa, depressa.
Já quase morrem esta noite os ecos.”



Mais dois, três dias, e iria levantar ferro da ilha dos náufragos para reviver a casa e o mundo e voltar à escrita e aos livros nas últimas linhas em que os abandonara.
Num golpe repentino tinha perdido a inteireza da fala, no mesmo golpe tinha perdido os valores da grafia e ficara analfabeto de mim e da vida. Subitamente também, retomara tudo isso mas foi preciso algum tempo para começar a ter consciência de tamanha felicidade.
A princípio, por prudência instintiva ou por quase superstição, evitava comprovar a realidade que me tinha sido restituída e experimentar-me em coisas que me eram essenciais. Para reabrir os livros receava que ainda não fosse a hora, havia que não perturbar a recuperação. Escrever, nem uma linha depois da prova salvadora com que os médicos arrumaram de vez o meu dossier. Ler, lia os jornais e sem a curiosidade que seria de esperar talvez porque o fosso que separava a fortaleza do hospital da humanidade exterior ainda não estivesse instintivamente vencido.
Não, leituras poucas. Pelo menos por enquanto. E no que tivesse a ver com escrever, nem pensar. Até sair do hospital jamais me quis abordar (inquietar, para ser mais preciso) como sujeito de livros e de escrita, uma identificação pessoal que eu só muito depois viria a relacionar com o letreiro-fantasma ƂAИHOϨ ƂAИHOϨ ƂAИHOϨ que me perseguira ao longo da minha erosão da memória e que foi a única recordação que sobreviveu integralmente a todo esse aniquilamento[1].
Quanto ao mais, o desfazer das trevas brancas repunha-me numa normalidade que me impressionava por ser tão nítida e tão espontânea, tão decorrente. O minuto interrompido e, ao fim de todo este tempo, continuado como se nada tivesse acontecido; o livro aberto, à espera, as anotações à vista; a frase abandonada a meio e prosseguida naturalmente – tudo assim, nada mais simples.
Entretanto, até ao final do internamento ia sabendo notícias do Outro que eu fora pelas descrições de quem o tinha visto na névoa antiga, e então nomes, pessoas e casos voltavam a povoar-me a memória. Sobretudo ao almoço com a Edite e nos passeias pelo corredor recapitulava-me e recapitulava o pesadelo quase amável donde eu me tinha libertado, embora não tivesse trazido de lá mais do que vislumbres fugazes, instantes ou insinuações.
Ao percorrer agora o território do hospital que correspondia a esse cenário, encontrava muito de raro em raro pormenores que me sugeriam alguns sinais da aridez da morte branca, atmosferas ou como que atmosferas, reflexos de luzes. Mais: de passagem, um ou dois apontamentos casuais levaram-me a reconstruir momentos concretos da minha marcha de sonâmbulo iluminado. Os passageiros sem viagem, por exemplo. Afinal, em frente do elevador o banco onde antes se dizia que eu tinha visto pessoas-em-estátua (a expressão não seria minha certamente mas foi assim que a traduziram), pois bem, esse banco estava lá, existia. Existia mas vazio, embora me tivessem ouvido falar de ocupantes «esquisitos» (doentes sem rosto?). Praticamente sem ninguém, pode dizer-se, estava igualmente a sala do televisor que era mais uma passagem do que outra coisa e que me parecia um espaço ao abandono com imagens a sucederem-se na penumbra. Mais adiante ficava um gabinete de enfermagem de que nunca me tinha dado conta, depois o corredor, o corredor que fora dos passos perdidos, depois as toilettes, depois novamente o quarto, e ponto final, ali acabava o mundo.
Acabava, não. Agora que eu tinha despertado o mundo recomeçava a partir dos dois companheiros de hospital que iria deixar em breve e que até lá eram os meus personagens de cada dia. Vivia-os com atenção. Com afecto, até, e de certo modo com admiração. Contava-os à Edite para não lhes perder o fraseado nem o adejar em torno da vida e da morte.
Cruzado de risos e de dores, Ramires, de olhos fechados, sonhava com o médico da sua redenção e esbravejava em roncos infernais para expulsar os aviões que lhe vinham invadir o sono. Por seu lado, Martinho, o velho, passava uma parte do tempo entre parênteses, ou seja, fechado muito com ele nos auscultadores que lhe davam música para esquecer o só Deus sabe que lhe estaria reservado. Volta não volta, os dois, para desentorpecer, metiam-se em tropelias de conversa com gargalhadas à mistura e em momentos especialíssimos Martinho punha-se a dissertar em voz pensada sobre as artes do bilhar.
Suponho que assentara naquele tema por explorar um bar de snookers na Nazaré e o snooker não lhe merecer particular consideração. Segundo ele, o snooker era bilhar de cavalgada americana (vinte e uma bolas à procura dum buraco) e se o escolhera para ramo de negócio a culpa cabia ao triste gosto do público da Nazaré, essa praia de calçudos. Para ele, bilhar, o que se diz bilhar, só o francês e mais nenhum. Aí é que sim. Aí, com três bolas em sujeito, predicado e complemento, o artista de mão de seda traçava uma oratória geométrica em cima do pano verde que era um pasmo de se ver.
Só tive conhecimento deste discurso no dia da minha despedida, mas pelo ar enfastiado com que o empreiteiro Ramires o ouviu depreendi que não tinha sido novidade para ele. Para mim foi, e de certo modo tomei-o como um adeus que o velho me endereçava. Eu partia, sorte minha, ele ficava. Mas pelo sim e pelo não, queria que eu levasse comigo uma imagem apropriada da sua pessoa. A dissertar numa cama de hospital em carambolas à meia volta, efeitos na conta certa, massés e tabelas de preciosidade, o velho era como se pairasse longe dali e da morte, presidindo a uma constelação de estrelas loucas a rolarem em céu aberto.
Últimos preparativos para a partida. Papéis da secretaria para assinar; eu, de gravata e gabardina, à espera da Edite. Mas era cedo, continuava a ser cedo. Ia ao corredor, espreitava à janela o arvoredo do hospital, lia a linhas soltas um semanário desportivo diante dos meus companheiros que se manteriam, não tinha dúvida, de olhos bem abertos até à minha despedida. Martinho desligara o walkman, Ramires não dizia palavra. Eu verificava a mala, olhava o relógio. Lá fora estava uma manha luminosa.
No quarto um silêncio em suspenso.


Pronto. Cá vou eu, Lisboa ao sol, cá vou eu, e agora, passados meses, já sentado diante destas folhas de papel, redijo-me em capítulo de liberdade a atravessar a capital com a Edite ao volante. Escrevo: é um meio-dia de inverno.
Só que enquanto escrevo tenho chuva na janela à minha esquerda e isso obriga-me a acrescentar que o meio-dia que estou a rememorar era (foi) um rasgão de céu e de luz numa estação sombria. Regressava a casa em saudação de primavera em pleno mês de Janeiro. Para trás ficava a pesada babilónia do Hospital de Santa Maria onde àquela hora estaria um cirurgião rodeado de toda a sua equipa a reconstruir o cérebro de alguém suspenso entre a terra e o céu. Ponho-lhe música de fundo, uma música burlesca, se possível, como o «Quarteto das Dissonâncias» de Mozart. Música, porque não? No renascer de cada vida a música é um privilégio abençoado, já lá dizia o empreiteiro Ramires por outras palavras. E por Ramires, lembro-me da tarde em que o companheiro dele, recostado na cama, se saiu com esta para o informar devidamente:
«Amigo Ramires, amigo Ramires, o amigo anda para aí todo seguro do seu Professor mas sabe o que é que alguns hospitais fazem agora?»
(Suspensão. Ramires de olhos no tecto, à espera.)
«Fazem», recomeçou Martinho, «uma manigância que nem você nem o mais astuto é capaz de desmaranhar. Levam-no para a sala das operações, está a compreender, mostram-lhe um cirurgião de primeiríssima, põem-lhe música se for caso disso, música para eles é um abelhar para entontecer, depois atiram-lhe com um anestesista para cima, picadela, coisa e tal, e assim que o amigo fica a ressonar em ponto morto, em vez do propriamente cirurgião entregam-no a um velhadas de prateleira ou a um doutorzeco qualquer que ande por aí aos caídos. Topou?»
Eu pela minha parte apreciei o aviso, aprecio, quero eu dizer, e parece que ainda estou a ver o nojo impassível com que Ramires ouviu aquele cantar de velhaco, salvo seja. Ouviu, deixou pousar, e como resposta ao maldizente, convidou-me em voz alta e bem sonante para uma festa de lagosta, ostras bravas e champanhe francês que andava a estudar com todos os pormenores para o dia em que se visse livre daquele estaleiro de entrevados, disse ele.
Dois anos. Já dois anos sobre isto e só hoje é que dou por encerrada para sempre a minha viagem à desmemória, arquivando-a nestes apontamentos escritos à deriva por indícios trazidos na corrente. Vou interrogando e retendo, apurando a caligrafia da recomposição, e quando chego ao convite do meu companheiro de hospital para uma celebração de lagosta com champanhe, não hesito em fechar e pôr assinatura no texto. Disse e vivi, Acta est fabula.
Como despedida, a festa anunciada parece-me uma vinheta condigna mas, se me é permitido, acrescento-lhe um fio de música.

Janeiro de 1997


[1] A única não. A hipótese de loucura, por exemplo, foi outro episódio de que guardo uma lembrança objectiva.

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