“Sai depressa, depressa.
Já quase morrem esta noite os ecos.”
Mais dois, três
dias, e iria levantar ferro da ilha dos náufragos para reviver a casa e o mundo
e voltar à escrita e aos livros nas últimas linhas em que os abandonara.
Num golpe
repentino tinha perdido a inteireza da fala, no mesmo golpe tinha perdido os
valores da grafia e ficara analfabeto de mim e da vida. Subitamente também,
retomara tudo isso mas foi preciso algum tempo para começar a ter consciência
de tamanha felicidade.
A princípio, por
prudência instintiva ou por quase superstição, evitava comprovar a realidade
que me tinha sido restituída e experimentar-me em coisas que me eram
essenciais. Para reabrir os livros receava que ainda não fosse a hora, havia
que não perturbar a recuperação. Escrever, nem uma linha depois da prova
salvadora com que os médicos arrumaram de vez o meu dossier. Ler, lia os
jornais e sem a curiosidade que seria de esperar talvez porque o fosso que
separava a fortaleza do hospital da humanidade exterior ainda não estivesse
instintivamente vencido.
Não, leituras
poucas. Pelo menos por enquanto. E no que tivesse a ver com escrever, nem
pensar. Até sair do hospital jamais me quis abordar (inquietar, para ser mais
preciso) como sujeito de livros e de escrita, uma identificação pessoal que eu
só muito depois viria a relacionar com o letreiro-fantasma ƂAИHOϨ ƂAИHOϨ ƂAИHOϨ que
me perseguira ao longo da minha erosão da memória e que foi a única recordação
que sobreviveu integralmente a todo esse aniquilamento[1].
Quanto ao mais, o
desfazer das trevas brancas repunha-me numa normalidade que me impressionava
por ser tão nítida e tão espontânea, tão decorrente. O minuto interrompido e,
ao fim de todo este tempo, continuado como se nada tivesse acontecido; o livro
aberto, à espera, as anotações à vista; a frase abandonada a meio e prosseguida
naturalmente – tudo assim, nada mais simples.
Entretanto, até
ao final do internamento ia sabendo notícias do Outro que eu fora pelas
descrições de quem o tinha visto na névoa antiga, e então nomes, pessoas e
casos voltavam a povoar-me a memória. Sobretudo ao almoço com a Edite e nos
passeias pelo corredor recapitulava-me e recapitulava o pesadelo quase amável
donde eu me tinha libertado, embora não tivesse trazido de lá mais do que
vislumbres fugazes, instantes ou insinuações.
Ao percorrer
agora o território do hospital que correspondia a esse cenário, encontrava
muito de raro em raro pormenores que me sugeriam alguns sinais da aridez da
morte branca, atmosferas ou como que atmosferas, reflexos de luzes. Mais: de
passagem, um ou dois apontamentos casuais levaram-me a reconstruir momentos
concretos da minha marcha de sonâmbulo iluminado. Os passageiros sem viagem,
por exemplo. Afinal, em frente do elevador o banco onde antes se dizia que eu
tinha visto pessoas-em-estátua (a expressão não seria minha certamente mas foi
assim que a traduziram), pois bem, esse banco estava lá, existia. Existia mas
vazio, embora me tivessem ouvido falar de ocupantes «esquisitos» (doentes sem
rosto?). Praticamente sem ninguém, pode dizer-se, estava igualmente a sala do
televisor que era mais uma passagem do que outra coisa e que me parecia um
espaço ao abandono com imagens a sucederem-se na penumbra. Mais adiante ficava
um gabinete de enfermagem de que nunca me tinha dado conta, depois o corredor,
o corredor que fora dos passos perdidos, depois as toilettes, depois novamente o
quarto, e ponto final, ali acabava o mundo.
Acabava, não.
Agora que eu tinha despertado o mundo recomeçava a partir dos dois companheiros
de hospital que iria deixar em breve e que até lá eram os meus personagens de
cada dia. Vivia-os com atenção. Com afecto, até, e de certo modo com admiração.
Contava-os à Edite para não lhes perder o fraseado nem o adejar em torno da
vida e da morte.
Cruzado de risos
e de dores, Ramires, de olhos fechados, sonhava com o médico da sua redenção e
esbravejava em roncos infernais para expulsar os aviões que lhe vinham invadir
o sono. Por seu lado, Martinho, o velho, passava uma parte do tempo entre
parênteses, ou seja, fechado muito com ele nos auscultadores que lhe davam
música para esquecer o só Deus sabe que lhe estaria reservado. Volta não volta,
os dois, para desentorpecer, metiam-se em tropelias de conversa com gargalhadas
à mistura e em momentos especialíssimos Martinho punha-se a dissertar em voz
pensada sobre as artes do bilhar.
Suponho que
assentara naquele tema por explorar um bar de snookers na Nazaré e o
snooker não lhe merecer particular consideração. Segundo ele, o snooker era
bilhar de cavalgada americana (vinte e uma bolas à procura dum buraco) e se o
escolhera para ramo de negócio a culpa cabia ao triste gosto do público da
Nazaré, essa praia de calçudos. Para ele, bilhar, o que se diz bilhar, só
o francês e mais nenhum. Aí é que sim. Aí, com três bolas em sujeito, predicado
e complemento, o artista de mão de seda traçava uma oratória geométrica em cima
do pano verde que era um pasmo de se ver.
Só tive
conhecimento deste discurso no dia da minha despedida, mas pelo ar enfastiado
com que o empreiteiro Ramires o ouviu depreendi que não tinha sido novidade
para ele. Para mim foi, e de certo modo tomei-o como um adeus que o velho me
endereçava. Eu partia, sorte minha, ele ficava. Mas pelo sim e pelo não, queria
que eu levasse comigo uma imagem apropriada da sua pessoa. A dissertar numa
cama de hospital em carambolas à meia volta, efeitos na conta certa, massés
e tabelas de preciosidade, o
velho era como se pairasse longe dali e da morte, presidindo a uma constelação
de estrelas loucas a
rolarem em céu aberto.
Últimos
preparativos para a partida. Papéis da secretaria para assinar; eu, de gravata
e gabardina, à espera da Edite. Mas era cedo, continuava a ser cedo. Ia ao
corredor, espreitava à janela o arvoredo do hospital, lia a linhas soltas um
semanário desportivo diante dos meus companheiros que se manteriam, não tinha
dúvida, de olhos bem abertos até à minha despedida. Martinho desligara o walkman, Ramires não dizia
palavra. Eu verificava a mala, olhava o relógio. Lá fora estava uma manha
luminosa.
No quarto um
silêncio em suspenso.
Pronto. Cá vou eu, Lisboa ao sol, cá vou eu, e agora, passados meses, já
sentado diante destas folhas de papel, redijo-me em capítulo de liberdade a
atravessar a capital com a Edite ao volante. Escrevo: é um meio-dia de inverno.
Só que enquanto
escrevo tenho chuva na janela à minha esquerda e isso obriga-me a acrescentar
que o meio-dia que estou a rememorar era (foi) um rasgão de céu e de luz numa
estação sombria. Regressava a casa em saudação de primavera em pleno mês de
Janeiro. Para trás ficava a pesada babilónia do Hospital de
Santa Maria onde àquela hora estaria um cirurgião rodeado de toda a sua equipa
a reconstruir o cérebro de alguém suspenso entre a terra e o céu. Ponho-lhe música de
fundo, uma música burlesca, se possível, como o «Quarteto das Dissonâncias» de Mozart. Música,
porque não? No renascer de cada vida a música é um privilégio abençoado, já lá
dizia o empreiteiro Ramires por outras palavras. E por Ramires, lembro-me da
tarde em que o companheiro dele, recostado na cama, se saiu com esta para o
informar devidamente:
«Amigo Ramires,
amigo Ramires, o amigo anda para aí todo seguro do seu Professor mas sabe o que
é que alguns hospitais fazem agora?»
(Suspensão.
Ramires de olhos no tecto, à espera.)
«Fazem»,
recomeçou Martinho, «uma manigância que nem você nem o mais astuto é capaz de
desmaranhar. Levam-no para a sala das operações, está a compreender,
mostram-lhe um cirurgião de primeiríssima, põem-lhe música se for caso disso,
música para eles é um abelhar para entontecer, depois atiram-lhe com um
anestesista para cima, picadela, coisa e tal, e assim que o amigo fica a
ressonar em ponto morto, em vez do propriamente cirurgião entregam-no a um
velhadas de prateleira ou a um doutorzeco qualquer que ande por aí aos caídos.
Topou?»
Eu pela minha
parte apreciei o aviso, aprecio, quero eu dizer, e parece que ainda estou a ver
o nojo impassível com que Ramires ouviu aquele cantar de velhaco, salvo seja.
Ouviu, deixou pousar, e como resposta ao maldizente, convidou-me em voz alta e
bem sonante para uma festa de lagosta, ostras bravas e champanhe francês que
andava a estudar com todos os pormenores para o dia em que se visse livre
daquele estaleiro de entrevados, disse ele.
Dois anos. Já
dois anos sobre isto e só hoje é que dou por encerrada para sempre a minha
viagem à desmemória, arquivando-a nestes apontamentos escritos à deriva por
indícios trazidos na corrente. Vou interrogando e retendo, apurando a
caligrafia da recomposição, e quando chego ao convite do meu companheiro de
hospital para uma celebração de lagosta com champanhe, não hesito em fechar e
pôr assinatura no texto. Disse e vivi, Acta est fabula.
Como despedida, a
festa anunciada parece-me uma vinheta condigna mas, se me é permitido,
acrescento-lhe um fio de música.
Janeiro de 1997
[1] A
única não. A hipótese de loucura, por exemplo, foi outro episódio de que guardo
uma lembrança objectiva.
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