terça-feira, 30 de outubro de 2012

De Profundis, Valsa Lenta [7]

“Para que o assombro da doença dure sempre
em coisa da memória te mudei”



Abrindo caminho por entre ditos e gargalhadas, chega a Edite com as nossas filhas. Vêm iluminadas, felizes, e depois delas a neurologista do relógio da correia bordada que traz um sorriso a condizer com a sua sobriedade natural.
Quando ela sai do quarto passamos ao corredor. Alguém me dá os parabéns como se tivesse sido eu o autor deste triunfo e um psiquiatra meu amigo expõe o fundamental da recuperação, surpreendente, surpreendente, repetiu ele, que me tinha acontecido. Ouvindo-o, penso no cérebro como o atlas vivo das grandes marchas do homem. Uma massa luminosa capaz de abranger os infinitos da mais impossível grandeza, do maior sempre maior ao mais ínfimo dos mais ínfimos, mas que se revolve ou se retém a um minúsculo sopro de pó; que se descodifica e resta neutro, terminado; que se recompõe e nos torna de novo vivos a um traço calculado da ciência.
Sinto-me tomado de gratidão. Isto de alguém se recomeçar assim depois de nulo é algo que deslumbra e ultrapassa.
Nessa noite fui acordar com um desfile de vozes femininas na escuridão do corredor. Enfermeiras? Cantavam Forever (uma canção que eu conhecera há muitos anos) como se viessem no rescaldo duma festa para entrarem no turno de serviço, pensei eu. Era uma procissão nocturna murmurada em inglês, um quase ritual que me fazia duvidar da minha recuperação. Delírio? A tal marcha para a loucura que me viera à cabeça no corredor dos passos perdidos? De ouvidos no escuro fiquei à espera que tudo acabasse. Acabou. O coro amorteceu como se fosse a afastar-se e por fim veio o silêncio. Na janela uma cortina de inverno em chuva miudinha.
Mas há o roncar dum avião a rasgar a noite, um resfolegar poderoso a caminho do aeroporto. E como se obedecesse a uma ordem, na cama à minha esquerda o empreiteiro Ramires começa a ressonar em crescendo, acompanhando a marcha do aparelho. Estremece em vibrações, aumenta o som à medida que o sente aproximar-se, aumenta mais e mais, e quando o tem mesmo por cima do hospital lança-lhe um trovejar de rugidos que abala o quarto de alto a baixo; inversamente, começa depois a baixar o tom, gradual, gradualmente, até o avião desaparecer do mapa da noite. Só então se dá por satisfeito e recolhe ao respirar compassado do sono.
No escuro, junto a dois homens adormecidos, tento ver para trás do meridiano da morte que acabei de dobrar esta manhã mas só encontro névoa luminosa. Dentro de uma ou duas horas, com as recordações da Edite e dos amigos em visita, vou continuar o reconhecimento da geografia sonâmbula por onde naveguei e que não era mais do que uma transfiguração do universo do meu quarto e de uns tantos passas à margem dele. Serão, rapaz, os teus últimos passeios do exílio, dai em diante saúde e baile é que é preciso.
Mas o corredor das portas abertas e das camas a meio sono deixou de ser a estrada sem limites que eu percorria nos cegos tempos. A sua brancura já não é de vazio e solidão nem de extensões de luz fria. Pelo contrário, é quase íntima, hospitalar, e, ponto importante, exibe doentes a desfilarem em parada de toilettes. Três ou quatro, não mais, e todos os dias os mesmos.
Olho-os. Passam por mim roupões acabados de estrear, chinelas de aconchegar sossegos; à saída duma porta, um infeliz de perna arrastada compõe o seu burguês casaco de quarto com alamares; mais adiante outro internado avança em rode com monograma e lenço de seda ao pescoço mas por razoes que só a ele dizem respeito calça luvas de lã grosseiríssima; outro ainda, um tipo enorme de cabelo grisalho, mostra-se de peito aberto num quimono de judoca e calções colados à coxa, exibindo umas pernas ilustradas por adesivos que cobrem enxertos de artérias ou algo assim. Brilhos de presença e uniforme: desejo de sobreposição ao anonimato ou à marginalizarão para que nos empurra a doença?
Numa porta volto a dar com o letreiro BANHOS que me perseguiu até à obsessão sob a máscara bizantina de ƂAИHOϨ e que é uma das raras imagens que me ficaram do tempo cego.
Do tempo nulo. Ou passivo. Como se queira.
De quando em quando vou até ao quarto e lá está o amigo Martinho de auscultadores nos ouvidos a receber a música que lhe vem debaixo dos lençóis e a magicar lucubrações. Na cama em frente o companheiro Ramires permanece de olhos fechados, agarrado ao braço inerte. Ou dorme ou são as dores de cabeça que o obrigam a estar naquela postura; mas se dorme, é garantido que logo que um boeing ou um airbus apareça no firmamento não deixará de dar o alarme, desatando a ressonar em crescendo. «O ressonar do avião», chama Martinho a esse estrondoso toque de peito que, por razões imponderáveis, é menos desvairado nos sonos de dia do que de noite.
Mas também pode acontecer que, quando mudo e de pálpebra tombada, o nosso Ramires esteja apenas fechado em pensamentos e se assim for, entre ele e o da outra cama não tardará a recomeçar o costumado baile das malícias:
“Ou muito me engano ou é amanhá que o Professor me vai marcar a operação.” (Ramires abrindo os olhos, com o ar de quem saiu duma meditação devidamente meditada.)
Sorriso de Martinho: «Operação com música ou sem música?» Nenhuma resposta do lado de lá; e o Martinho outra vez: «Pois eu, amigo Ramires, a noite passada sonhei que o doutor me estava a tirar a tampa do intrínseco.»
«Doutor? Qual doutor?» (Ramires.)
«Um qualquer, não interessa. Sonhei que ele me estava a descifrar de tampa aberta e que do meio dos miolos me saiu uma data de borboletas.»
«De vespas, quer você dizer.» (Ramires, rindo baixinho.)
E Martinho: «Ou isso. Realmente, antes vespas porque as borboletas são muito atreitas às flores de cemitério. (Riso). Na Primavera, bem entendido[1]
Ramires: «Eu cá não sonho. Tenho a consciência tranquila, compreende?»
Martinho: «Sonhar não é fácil.»
Ramires: «Ah, pois não.» Faz-se desinteressado; e de repente: «Diga-me uma coisa», agarra o braço paralítico, puxa-o mais para si, «uma coisa, amigo Martinho: o amigo lá no sonho sabia quem era o doutor que lhe estava a tirar a tampa? Sim, o operador, o cirurgião. Sabia? Claro que não sabia, o azar é esse. E quem não sabe, é garantido: acorda com uma coroa de flores e uma data de borboletas ao de cima.»
«Com vespas, amigo Ramires. Peço desculpa mas eram vespas.»
«Vespas ou borboletas vem tudo a dar no mesmo. Eu, ao menos se alguma vez sonhasse que me estavam a tirar a tampa havia mas era de me sair um anjinho de asas brancas a tocar corneta pela pauta.»
Gargalhada pronta do Martinho: «Pois é. E atrás do anjinho ia você a caminho do Pai do Céu sem o Professor lhe dizer adeus.»
Comerciante de muito traquejo no ramo de bar e bilhares, Martinho lançou a carambola e deu o assunto por arrumado, tornando a emparedar-se entre os auscultadores para ouvir uma música muito sua.
Nisto entrou uma enfermeira que se pôs às voltas pelo quarto, o termómetro, onde estava o termómetro, perguntava ela, nenhum dos senhores ali presentes tinha visto o termómetro? Martinho levantou um dos auscultadores: «O termómetro? Deve andar por aí.» E o construtor Ramires, de olhos fechados: «Se calhar derreteu-se com a febre.»
A enfermeira não só já se tinha habituado aos entremezes daquele par de corvos como fazia por lhes copiar o tom nos dias de boas marés. “Machista”, chamara ela ainda há pouco ao desgraçado do Martinho que na ocasião parecia uma caveira deposta sobre a almofada porque tinha tirado a dentadura. «Machista é que o senhor é, fique sabendo.» E com esta deixara-o de boca às moscas porque machista devia ser uma palavra que não lhe constava lá muito bem.



[1] Primavera-dos-cemitérios: mariposas, mariposas, pétalas a adejar por cima de campas ao sol. Ao redigir este diálogo, lembrei-me da «mariposa-caveira» (Acherontea antropos, L.) que os mexicanos adoptaram como figurante das profissões de Carnaval,

Sem comentários:

Enviar um comentário