A residência paroquial
de Randin é uma
bela casa de pedra antiga, cheia de sol e de história.
De sol é tão benquista
que nem o mês de Fevereiro, o das brumas, lhe falta com ele.
Para a história ficará
mais este dado: nela teve lugar, no pretérito dia 22 de Janeiro, a fundação do
grupo «Amigos do Couto Misto», entre os quais eu tive a honra de ficar
incluído.
Lá voltámos no dia 11
do corrente para a primeira sessão de trabalhos.
Estava, como disse, um
desses esplêndidos dias de Fevereiro, em que os pássaros despertam para o
acasalamento e os amantes da natureza para os passeios ao ar livre.
Da agenda constava um
almoço em Tourém. Resolvemos ir a pé. Entre damas e cavalheiros, éramos à volta
de trinta, mais que suficientes para uma alegre excursão. Metemos pés a caminho
em gárrulo convívio de vozes e risos.
Lembrei-me de quando,
na minha mocidade, por ali andei a saltar sebes e riachos, em divertido, quando
não perigoso, jogo das escondidas com os guardas-fiscais e os carabineiros.
Coisas do passado. Hoje as duas aldeias estão ligadas por um estradão
asfaltado, directo, livre e franco. Os de Tourém atravessam Randin com as suas
manadas de vacas para irem pastorear campos do outro lado. Outros tempos,
outras mentalidades. Se bem que ainda haja muito que aprender e emendar. Na
hotelaria, por exemplo. Os restaurantes de Barroso ainda não aprenderam a explorar
racionalmente o filão que os galegos representam. Exageram nos preços e
espantam-nos.
Assim aconteceu em
Tourém. Verdade se diga que o ágape foi um festim. Não tanto pelas iguarias,
muito embora nada haja a dizer em desabono da cozinheira, mas pela alegria e
boa disposição dos convivas. Não haja dúvida de que os galegos são muito mais
alegres e expansivos do que nós, barrosões. A confraternização meteu concertina,
guitarra, pandeireta, vozes agradáveis, cantigas para todos os gostos e
feitios. Foram duas ou três horas de plena harmonia de corpo e de espírito.
O preço do repasto,
porém, destoou…
Eu era o único
barrosão do grupo. Despedi-me dos meus amigos galegos com a suspeita de que, em
próximas reuniões, os organizadores pensarão duas vezes antes de marcarem
almoços em Tourém.
Tinha ido pelo Larouco. Resolvi regressar pela Mourela. Ainda
havia sol. Parei em plena serra para oxigenar os pulmões. À minha direita
elevava-se um pico eriçado de penhascos. «Dali deve ver-se o mar…» – disse para comigo. E fui ver. Mas fui ao engano. De lá
avistava-se apenas outro morro. E depois outro. E um terceiro. E ainda um
quarto. E não sei quantos mais. Até a vista esbarrar nos «Cornos de Fonte Fria»
que assim se chamam, se não estou em erro, os picos mais altos do Gerês
barrosão.
Ingenuidade a minha:
ver o oceano… O que eu vi foi um mar de silêncio… Um silêncio vivo, vibrátil,
melódico. Música indefinida, longínqua. Dos anjos?
Aparentemente, quem
sobe ao alto dos montes, fica mais perto do céu. Mas, quanto a mim, os anjos
não passam de criações alucinatórias de teólogos alucinados. Reais, só os
astros. Seria aquilo música dos astros?
Mas para que procurar
no céu coisas que a terra explica?
Subi outro morro. A
música persistia. Talvez agora levemente mais perceptível: sonoridade
polifónica de campainhas. Não via rebanho nenhum. Mas tinha a certeza: aquela
orquestração de bronzes só dum grande rebanho podia vir. Em ondas. Ondas que
iam e vinham. Ora encapeladas como o mar das tempestades, ora bonançosas como o
mar das calmarias.
Ondas sonoras. Das
campainhas do gado? Da cantilena dum regato?
Ou apenas música do diáfano
silêncio da Mourela?
Enigmáticas maravilhas
da nossa terra.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 47 e s.)
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