“E agora, José?
[...] você marcha, José!
José, para onde?”
Carlos Drummond de Andrade
Nesta introdução
à perda de identidade que um transtorno do cérebro tinha acabado de
desencadear, o que me parece desde logo implacável e irreversível é a precisão
com que em tão rápido espaço de tempo fui desapossado das minhas relações com o
mundo e comigo próprio. Como se acabasse de dar início a um processo de
despersonalização, eu tinha-me transferido para um sujeito na terceira pessoa (Ele, ou o meu nome, é) que ainda por cima se tornava mais alheio e mais abstracto pela
imprecisão parece que. Além disso, a
circunstância de ter respondido à Edite com o apelido e não com o meu primeiro
nome, o mais cúmplice entre marido e mulher e o único que nos era natural, é
outro indício do distanciamento provocado pelo golpe de azar que me destituirá
de memória e de passado.
Ele, o Outro. O
outro de mim. Em menos de nada, já a Edite falava ao telefone com os médicos
sobre esse alguém impessoal que eu estava a começar a ser. Ouvia-a do meio do hall em grande serenidade. Sabia, tenho
essa ideia, que alguma coisa se estava a passar comigo, uma coisa oculta,
activa, mas nessa altura já principiava a ouvir e a sentir só de passagem, sem registar. (Mesmo assim tinha algum conhecimento
da ansiedade que me rodeava: «Isto não vai ser nada», creio ter dito à Sylvie
quando a descobri no corredor, atenta aos telefonemas da Edite.)
Lembro-me de que
essa manha foi invadida por um aguaceiro desalmado, ouvia-se uma chuva grossa e
pesada lá fora mas deve ter sido passageira porque quando acabou a Edite ainda
estava ao telefone. A partir de então tudo o que sei é que me pus ao espelho da
casa de banho a barbear-me com a passividade de quem está a barbear um ausente –
e foi ali.
Sim, foi ali.
Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta de vida, foi
naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no
espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem nome e sem
memória e por consequência incapaz da menor relação passado-presente, de
imagem-objecto, do eu com outro alguém ou do real com a visam que o abstracto
contém. Ele. O mesmo que a mulher (Edite, chama-se ela mas nada garante que
esse homem ainda lhe conheça o nome, que não a considere apenas um facto, uma
presença) exacto, esse mesmo Ele, o tal que a Edite irá encontrar, não tarda muito,
a pentear-se com uma escova de dentes antes de partirem de urgência para o
Hospital de Santa Maria e o mesmo que, dias depois, uma enfermeira surpreenderá
em igual operação ao espelho do lavatório do quarto.
Dias depois,
quando?
Sem memória
esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto. Perde-se a vida
anterior. E a interior, bem entendido, porque sem referências do passado morrem
os afectos e os laços sentimentais. E a noção do tempo que relaciona as imagens
do passado e que lhes dá a luz e o tom que as datam e as tornam significantes,
também isso. Verdade, também isso se perde porque a memória, aprendi por mim, é
indispensável para que o tempo não só possa ser medido como sentido. Assim, ao
ver o meu Outro eu a pentear-se com uma escova de dentes num quarto de hospital
(conforme me contaram depois) pergunto-me quantas vezes lhe aconteceu aquilo e
logo de instante vejo uma enfermeira a aparecer-lhe por trás e a trocar-lhe a
escova pelo pente, sem um comentário, sem uma palavra sequer, pura e
simplesmente na prática de quem executa uma rotina. E ele a obedecer-lhe sem a
menor resistência, ele como que a cumprir a parte que lhe compete nessa rotina.
«Sempre este jogo?», pergunto.
Talvez. É
possível que a aceitação apática do erro se devesse à sua incapacidade
mnemónica de relacionar – e portanto de questionar. Possível. Para ele, agora
ou ontem tudo era outrora, mundo alheio ou como tal. E desinteresse. O
constante e desinteressado desinteresse do homem desabitado de pessoas e de
lugares, de tempo e de sentimentos.
Apatia, nesse
caso? Nesta fase do processo admito que não se tratasse propriamente de apatia,
os médicos é que poderão dizer. Que eu saiba, ele ao princípio sabia-se doente.
Ou teria uma percepção limiar da impossibilidade de se conjugar com os outros,
uma impossibilidade com a qual convivia numa aceitação natural. Recordo-me até
de que ao observar uma coisa que lhe chamasse a atenção a punha instintivamente
de parte porque tinha como certo que um segundo depois a iria esquecer.
Ouvir e perceber
enquanto ouvia mas apagar prontamente, era o traçado em que ele se movia. Ouvir
e apagar logo-logo. Apagar. E ver, ver também contava. Ver pessoas (figuras)
através dum vidro mudo e perdê-las acto contínuo. Tudo sem angústia, como quem
preenchesse o tempo numa serenidade terminal. Como quem, na desertificação que
o invadia, fosse avançando para a morte cerebral num cenário de contornos
indiferentes.
Nas Poesias de Drummond de Andrade que tenho
acolá na estante, José marchava. Mas para onde, José?
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