“Na véspera de não partir nunca...”
Há pouco, ao
transcrever aquela frase do Hemingway,
lembrei-me de mim a tropeçar no meu nome quando, depois de ter sido desligado
do soro, me passeava no corredor como numa galeria sem história. Evadido do
quarto e dos dois vultos de gaiola que saltitavam palavras mudas um para o
outro como se fossem sopros de fumo, deslizava por entre portas e paredes duma
brancura macia.
Andava por ali,
transposto para qualquer Alguém de mim num território satélite sem vida. Ainda
que árida, a atmosfera era leve e luminosa e eu transitava pelas pessoas com um longo olhar sem rumo. Um animal a
planar dentro duma redoma de vidro, é como me imagino naquela altura.
Nesse período, já
o disse, as palavras que me chegavam vinham cegas. Sombras não havia nem podia
haver numa claridade tão absorvente (só hoje enquanto escrevo
é que me dou conta
disso) não havia sombras não podia haver a não ser a do Outro que andava por lá
Outro que afinal não era mais que uma sombra saída de algures de mim e a
desfocar-se por si só não se sabe em que direcção nem com que objectivo
uma sombra branca
corrida no branco
como foi que desse
apagamento consegui reter alguma luzinha a brilhar até agora é coisa que ainda
estou para entender mas retive retive mesmo? retive – melhor assim.
Verdade, melhor
assim.
Paredes mansas,
as tais paredes em alvura-pérola; por entre elas, os sons, as figuras e o
tempo, tudo num deslizar suave, sem densidade. Eu, em pessoa de coisíssima
nenhuma, cumpria as tardes de hospital num vaguear inocente. Mesmo assim, aconteceu
saltar-me ao caminho o meu nome. Saltou-me poucas vezes é certo, três ou quatro
se tanto, mas era um nome que andava a monte repetido e desfigurado nos ficheiros
da terapia da fala um nome a acenar-me a acenar-me
José José José
numa espécie de
provocação à distancia José que nome tão feio considerava eu.
«Feio». No
vocabulário das trevas brancas o meu qualificativo-chave era esse e
provavelmente só utilizado na refutação dos nomes das pessoas. Estava longe de
adivinhar que, ao voltar um dia à comunidade dos vivos, iria ouvir o mesmo
comentário da boca dum herói de Wim Wenders no filme Lisbon Story. O mesmo, sem tirar nem
pôr. Com o mesmo sujeito e com a mesma frase, até. Viajante exótico no exótico
duma cidade de que desconhecia em absoluto a língua, o passado e o presente
(como me acontecera a mim no enquadramento para onde a doença me tinha atirado),
o personagem de Wenders pretendia descobrir uma cidade de gente através de sons
e só de sons, desabonados de quaisquer referências culturais (sons ausentes de
memória, diria eu).
Uma sofisticação
ociosa, essa de se querer reduzir a comunicação entre humanos a uma
essencialidade tão artificiosamente concebida. Seria, mas Wenders tentou. Deve
ter ficado tão encantado com a ideia que não perdeu tempo em enviar um viajante
de microfone em punho à cidade de Ulissipo
para a descobrir em metáfora num amontoado de palavras sem alma.
Mas aconteceu que
ao longo das suas gravações o homem de Wenders deparou com alguém a pronunciar
a palavra José. E achou insólito: José? Compreendeu que se tratava dum nome
próprio, mas não conseguia mais do que classificá-lo como um articular de
sílabas pobres. «Que nome tão feio», comentou de frente para a câmara. Textualmente
como eu me tinha comentado a mim próprio no Hospital de Santa Maria.
Adiante. Corredor
para a frente, corredor para trás, o Outro que se desdobrou de mim comporta-se
naquele planeta como um figurante gratuito que o destino acrescentou à
paisagem. Continuo a recordá-lo
não tem hora nem
lugar é a impressão que dá
uma afabilidade
incolor no trato com os médicos e com as enfermeiras que o acompanham
e calmo sempre
calmo praticamente sem palavras mas de quando em quando com a luz discreta dum
meio sorriso para manifestar presença ou como uma deferência para com as
pessoas com quem se cruza.
Atenção aqui,
atenção, porque alguém o viu pegar num jornal e ficar com ele dependurado sem o
abrir. Dizem que ficou a observar durante alguns segundos uma fotografia de Cavaco Silva
na primeira página e que passou
passou-se está
impossibilitado de ler impossibilitado mas não se perturba
segue por cima.
Por vezes vamos
encontrá-lo diante dum televisor onde as imagens lhe aparecem sem conotações
umas com as outras num discurso conflituoso. Sei desse desenrolar confuso ou
julgo que sei. E também sei que ele recebia as vozes como ecos desligados das
pessoas, a menos que essa, como outras rememorações, não passe duma «visão
auditiva» que eu tivesse construído no limbo da pós-libertação da morte branca.
Jogo dos ecos,
nesse caso. Falsa visam.
Seria?
Pausa agora no
inverno, sol ameno. Por cima do arvoredo do hospital há um palácio de cristais
dourados um palácio não exagero vê-se da janela do quarto e eu fixo-o com
interesse
ele também mas
passado um segundo
já o perdeu apesar
de continuar a olhá-lo. Esta figuração cintilante repete-se a qualquer momento
em que se aproxime da janela mas assim que se afastar é como se tivesse
abandonado uma vidraça deserta.
Andar andar
sempre a andar. Internamento de Neurologia,
cama janela lavabos
corredor
corredor para a
frente corredor para trás de cada lado só vê quartos de porta aberta com camas
a meio sono
em determinado
recanto estão sentados três ou quatro doentes num banco. Em roupão (sempre os
mesmos?) e de frente para a entrada dum elevador que nunca chega. Na postura
impassível de personagens que se ignoram entre si
parecem estar a
aguardar a partida para uma viagem confidencial.
Passos. Os passos
dele: perdidos. Para a frente e para trás, perdidos. O costume. Se voltar ao
televisor, os doentes que irá encontrar diante do écrã estarão todos sem rosto
ou é como se estivessem porque os esquecerá assim que os tocar com o olhar
se
é que os toca.
O mesmo lhe
acontece com os dois companheiros de quarto entregues aos seus diálogos de
vultos.
Prossigo o
inventário. Por cima duma porta não sei onde havia um letreiro que me obrigava
a um soletrar intrigado: ƂAИHOϨ. Aquilo parecia-me uma grafia cirílica.
Alfabeto eslavo?
Cada vez que
passava por lá com a Edite apontava-o sem mais nada e ela, já sem levantar os
olhos, respondia BANHOS. Então sim, eu conseguia ler e reconhecia a palavra.
BANHOS. Era isso
devia ser isso mas imediatamente revertia à forma inicial ƂAИHOϨ ƂAИHOϨ ƂAИHOϨ de
tanto o estudar a sós e de o saber impossível o letreiro fez com que me
interrogasse
sem exactidão de
consciência é certo sem sobressalto
mas a interrogar-me
se não estaria a
caminhar para a loucura.
Inacreditável.
Eu, o Outro de mim, em viagem de passas perdidos e a interrogar-me se não
estaria a caminhar para a loucura. E o caso é que, desconcertante ou não, a
pergunta aconteceu. E para maior surpresa, não a esqueci. Loucura, caminho para
a loucura, a questão chegou-me com uma insistência passadeira mas no estado em
que me encontrava o que seria para mim a loucura? Como é que eu, impessoal e
tão a esmo, me tinha lembrado de tal coisa a propósito dum letreiro? Pensando-a
a esta distância, admito que essa perturbação se possa dever a um eco da minha
identidade do passado: ao enfrentar aquele letreiro como uma provocação da
leitura e da escrita era o ex-autor de livros que estremecia na cegueira em que
tinha mergulhado e que tirava do fundo da sua razão perdida o esboço duma
interrogação à loucura. Seria?
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