domingo, 28 de outubro de 2012

De Profundis, Valsa Lenta [5]

“Na véspera de não partir nunca...”


Há pouco, ao transcrever aquela frase do Hemingway, lembrei-me de mim a tropeçar no meu nome quando, depois de ter sido desligado do soro, me passeava no corredor como numa galeria sem história. Evadido do quarto e dos dois vultos de gaiola que saltitavam palavras mudas um para o outro como se fossem sopros de fumo, deslizava por entre portas e paredes duma brancura macia.
Andava por ali, transposto para qualquer Alguém de mim num território satélite sem vida. Ainda que árida, a atmosfera era leve e luminosa e eu transitava pelas pessoas com um longo olhar sem rumo. Um animal a planar dentro duma redoma de vidro, é como me imagino naquela altura.
Nesse período, já o disse, as palavras que me chegavam vinham cegas. Sombras não havia nem podia haver numa claridade tão absorvente (só hoje enquanto escrevo
é que me dou conta disso) não havia sombras não podia haver a não ser a do Outro que andava por lá Outro que afinal não era mais que uma sombra saída de algures de mim e a desfocar-se por si só não se sabe em que direcção nem com que objectivo
uma sombra branca corrida no branco
como foi que desse apagamento consegui reter alguma luzinha a brilhar até agora é coisa que ainda estou para entender mas retive retive mesmo? retive – melhor assim.
Verdade, melhor assim.
Paredes mansas, as tais paredes em alvura-pérola; por entre elas, os sons, as figuras e o tempo, tudo num deslizar suave, sem densidade. Eu, em pessoa de coisíssima nenhuma, cumpria as tardes de hospital num vaguear inocente. Mesmo assim, aconteceu saltar-me ao caminho o meu nome. Saltou-me poucas vezes é certo, três ou quatro se tanto, mas era um nome que andava a monte repetido e desfigurado nos ficheiros da terapia da fala um nome a acenar-me a acenar-me
José                José                 José
numa espécie de provocação à distancia José que nome tão feio considerava eu.
«Feio». No vocabulário das trevas brancas o meu qualificativo-chave era esse e provavelmente só utilizado na refutação dos nomes das pessoas. Estava longe de adivinhar que, ao voltar um dia à comunidade dos vivos, iria ouvir o mesmo comentário da boca dum herói de Wim Wenders no filme Lisbon Story. O mesmo, sem tirar nem pôr. Com o mesmo sujeito e com a mesma frase, até. Viajante exótico no exótico duma cidade de que desconhecia em absoluto a língua, o passado e o presente (como me acontecera a mim no enquadramento para onde a doença me tinha atirado), o personagem de Wenders pretendia descobrir uma cidade de gente através de sons e só de sons, desabonados de quaisquer referências culturais (sons ausentes de memória, diria eu).
Uma sofisticação ociosa, essa de se querer reduzir a comunicação entre humanos a uma essencialidade tão artificiosamente concebida. Seria, mas Wenders tentou. Deve ter ficado tão encantado com a ideia que não perdeu tempo em enviar um viajante de microfone em punho à cidade de Ulissipo para a descobrir em metáfora num amontoado de palavras sem alma.
Mas aconteceu que ao longo das suas gravações o homem de Wenders deparou com alguém a pronunciar a palavra José. E achou insólito: José? Compreendeu que se tratava dum nome próprio, mas não conseguia mais do que classificá-lo como um articular de sílabas pobres. «Que nome tão feio», comentou de frente para a câmara. Textualmente como eu me tinha comentado a mim próprio no Hospital de Santa Maria.
Adiante. Corredor para a frente, corredor para trás, o Outro que se desdobrou de mim comporta-se naquele planeta como um figurante gratuito que o destino acrescentou à paisagem. Continuo a recordá-lo
não tem hora nem lugar é a impressão que dá
uma afabilidade incolor no trato com os médicos e com as enfermeiras que o acompanham
e calmo sempre calmo praticamente sem palavras mas de quando em quando com a luz discreta dum meio sorriso para manifestar presença ou como uma deferência para com as pessoas com quem se cruza.
Atenção aqui, atenção, porque alguém o viu pegar num jornal e ficar com ele dependurado sem o abrir. Dizem que ficou a observar durante alguns segundos uma fotografia de Cavaco Silva na primeira página e que passou
passou-se está impossibilitado de ler impossibilitado mas não se perturba
segue por cima.
Por vezes vamos encontrá-lo diante dum televisor onde as imagens lhe aparecem sem conotações umas com as outras num discurso conflituoso. Sei desse desenrolar confuso ou julgo que sei. E também sei que ele recebia as vozes como ecos desligados das pessoas, a menos que essa, como outras rememorações, não passe duma «visão auditiva» que eu tivesse construído no limbo da pós-libertação da morte branca.
Jogo dos ecos, nesse caso. Falsa visam.
Seria?
Pausa agora no inverno, sol ameno. Por cima do arvoredo do hospital há um palácio de cristais dourados um palácio não exagero vê-se da janela do quarto e eu fixo-o com interesse
ele também mas passado um segundo
já o perdeu apesar de continuar a olhá-lo. Esta figuração cintilante repete-se a qualquer momento em que se aproxime da janela mas assim que se afastar é como se tivesse abandonado uma vidraça deserta.
Andar andar sempre a andar. Internamento de Neurologia,
cama janela lavabos corredor
corredor para a frente corredor para trás de cada lado só vê quartos de porta aberta com camas a meio sono
em determinado recanto estão sentados três ou quatro doentes num banco. Em roupão (sempre os mesmos?) e de frente para a entrada dum elevador que nunca chega. Na postura impassível de personagens que se ignoram entre si
parecem estar a aguardar a partida para uma viagem confidencial.
Passos. Os passos dele: perdidos. Para a frente e para trás, perdidos. O costume. Se voltar ao televisor, os doentes que irá encontrar diante do écrã estarão todos sem rosto ou é como se estivessem porque os esquecerá assim que os tocar com o olhar
se é que os toca.
O mesmo lhe acontece com os dois companheiros de quarto entregues aos seus diálogos de vultos.
Prossigo o inventário. Por cima duma porta não sei onde havia um letreiro que me obrigava a um soletrar intrigado: ƂAИHOϨ. Aquilo parecia-me uma grafia cirílica. Alfabeto eslavo?
Cada vez que passava por lá com a Edite apontava-o sem mais nada e ela, já sem levantar os olhos, respondia BANHOS. Então sim, eu conseguia ler e reconhecia a palavra.
BANHOS. Era isso devia ser isso mas imediatamente revertia à forma inicial ƂAИHOϨ ƂAИHOϨ ƂAИHOϨ de tanto o estudar a sós e de o saber impossível o letreiro fez com que me interrogasse
sem exactidão de consciência é certo sem sobressalto
mas a interrogar-me
se não estaria a caminhar para a loucura.
Inacreditável. Eu, o Outro de mim, em viagem de passas perdidos e a interrogar-me se não estaria a caminhar para a loucura. E o caso é que, desconcertante ou não, a pergunta aconteceu. E para maior surpresa, não a esqueci. Loucura, caminho para a loucura, a questão chegou-me com uma insistência passadeira mas no estado em que me encontrava o que seria para mim a loucura? Como é que eu, impessoal e tão a esmo, me tinha lembrado de tal coisa a propósito dum letreiro? Pensando-a a esta distância, admito que essa perturbação se possa dever a um eco da minha identidade do passado: ao enfrentar aquele letreiro como uma provocação da leitura e da escrita era o ex-autor de livros que estremecia na cegueira em que tinha mergulhado e que tirava do fundo da sua razão perdida o esboço duma interrogação à loucura. Seria?

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