Entrelinhas Duma Memória
i) Memória, Memória Descritiva e, dai, Memória duma Desmemória poderia
chamar-se a este relato se o rigor científico me tolerasse um título de
metáfora tão esguia e o gosto da escrita o não rejeitasse por exibicionismo
fácil.
Todavia, culpa
minha, foi na memória ou na tragédia da memória que, com maior ou menor erro,
concentrei o acidente vascular cerebral que acabo de redigir. Se esse
enforcamento é aceitável do ponto de vista neurológico não sei, mas foi a
experiência sofrida que mo ditou na interpretação forçosamente diletante em que
a tentei descrever.
«Uma das minhas
filhas diz que o pai opera memórias», referiu o Prof. João Lobo Antunes numa
entrevista. Uma expressão feliz, é assim que eu sinto muito no íntimo esta
definição do neurocirurgião. Estou mesmo em crer que dificilmente encontrarei
outra melhor nem uma síntese mais expressiva do fenómeno que designei por morte
branca.
Bem sei, a morte
branca não existe, eu estive lá. Tudo o que me aconteceu nessas paragens cabia
aos outros, não me tocava.
Era
um glaciar, a morte branca. A memória congelada.
Se
o sonho é já por si uma memória, sem memória poderá o indivíduo sonhar?
ii) Nas entrelinhas desta Memória ou
como se lhe queira chamar há acontecimentos pessoais que, embora ocultos, me
parecem bastante próximos do acidente cerebral que acabei de descrever, em
particular um desastre de automóvel ocorrido três meses antes. Relembro-o:
Tudo aconteceu
pela mão do Diabo, tudo fulminante, brutal. Uma viagem solitária de dez horas
ao volante desde Burgos até
Lisboa, um jantar tardio com António Tabucchi e Marcello Mastroianni
no restaurante Comida d'Urso e, horas depois, um monte de destroços, com o meu
carro enfiado noutro carro à saída do Parque Eduardo VII.
Insensibilidade
cerrada a seguir à colisão. Comportamento automático e memória «automática»,
digamos assim, nas respostas às situações mas tudo num aturdimento em casulo
opaco: factos, pessoas e lugares fechados ali para sempre.
Entrada nos
cuidados intensivos do Hospital de Santa
Maria com três costelas cravadas na pleura. Dessas longas horas de meia
inconsciência, apenas uma recordação: o flash nocturno dum enorme salão de
pedra com dois ou três médicos a discursarem em espanhol diante da maca onde eu
me encontrava. Imagens de árvores a escorrerem chuva lá fora – as árvores da
cerca do hospital, possivelmente.
Apesar de o meu
traumatismo cerebral não ter sido uma sequela deste acidente, a alienação da
memória que ele determinou constituiu para mim uma referência perturbadora. A
memória como exponencial comum a dois desastres.
iii) No que escrevi procurei não ceder a
especulações de circunstancia pela prudência que obriga a cingir ao factual e
ao mais estrito para não cair em domínios que não me caberiam.
Intencionalmente,
também, não recorri no meu trabalho à colaboração de quaisquer especialistas.
Não pretendi nem poderia pretender transmitir uma experiência tão complexa com
a segurança, aproximada sequer, daquela com que a literatura médica já a tem
certamente mais que descrita. Em vez disso, interessava-me apresentar o testemunho
dum homem de formação corrente na sua abordagem à perda de identidade que lhe
ocorreu em resultado dum acidente cerebral.
Assim sendo, os
erros, imprecisões, preconceitos ou ideias feitas que tenham sido verificados
ao longo da narrativa devem permanecer como indispensáveis à espontaneidade
elementar e declaradamente pessoal que lhe pode conceder algum direito para vir
a público. Os erros ou as imprecisões são dados que ilustram a atitude cultural
face à doença do dito homem corrente e, juntamente com o seu «modo de contar»,
podem revelar a sintaxe dum comportamento de crise e porventura alguns
complexos da sua interioridade.
iv) Uma prevenção atenta contra as
seduções que a ficção tende a extrair da natureza dum tema carregado de efeitos
e de dramatismo.
Sobretudo no
Diálogo a Duas Máscaras, interpretado pelos meus companheiros de quarto, esse
risco de apropriação pressente-se à primeira leitura como não podia deixar de
ser, uma vez que se está diante duma recriação de personagens reais e só como
recriação elas poderiam ser transmitidas.
Hoje Ramires e
Martinho estão vivos e integralmente recuperados. Ouvindo-os, conheci uma
imagem terrena e quase mítica do médico, ao mesmo tempo dignificante e plena de
humor sacrificado no discurso sobre a morte. Eles não interrogavam os mistérios
da doença, interrogavam a verdade de quem a poderia derrotar. Os dois, em
contraponto, situando o médico como referência final, transformavam-no em dramatis personna da sua «commédia
della paura».
v) Uma última palavra: penso que nenhum
escritor que ama realmente a vida se justifica com a posteridade no seu esforço
de perfeição e nos seus fracassos e que nenhum trabalha a sua obra como se
tecesse um Requiem de
si próprio. Este relato é, pois, uma comunicação de circunstância. Um
apontamento pessoal. Mas é também um desabafo de gratidão pela competência e
pela solidariedade que me foi prestada no meu internamento hospitalar.
Aí verifiquei uma
vez mais que assim como a Literatura não é uma academia de frases também a
Ciência não é um sacrário de tecnologias. Isso tem a ver directamente com a
Ciência como humanismo superior no enquadramento universal que ainda há pouco
foi sublinhado entre nós por Um Modo de Ser, de João Lobo Antunes.
Uma tal concepção afirma-se no verso de Álvaro de Campos «O binómio de Newton é tão belo como
a Vénus de Milo» e prolonga-se num dos maiores génios da física do nosso
tempo, Leo Szilard,
quando defende que «o cientista criador tem muito em comum com o artista e o
poeta».
É nessa
sensibilização que manifesto aqui o meu reconhecimento ao Prof. Rui de Lima e
aos Drs. João Cravino e Luís Beija, da Cirurgia Cardiotorácica do Hospital de Santa
Maria e do mesmo modo ao Prof. Castro Caldas e Dra. Teresa Pinho e Melo,
dos Serviços de Neurologia daquele estabelecimento hospitalar.
J.C.P.
Sem comentários:
Enviar um comentário