quinta-feira, 4 de outubro de 2012

PUNIR

Ali ao Rato, o carro estaca inesperadamente. Há um instante de silêncio e, como a paragem se prolonga, as cabeças voltam-se, de sobrecenhos carregados, e ouvem-se os primeiros murmúrios de impaciência: «Então que há? Isto anda ou não anda?», etc. Há movimento, perguntas, convívio, curiosidade em todas as fisionomias. Alguns passageiros soerguem-se no assento para ver melhor.
É cedo. Está uma linda manhã, e eu sinto-me bem neste eléctrico. Em todo o caso, olho também, sem pressa, numa solidariedade instintiva com a vizinhado lado, bonita, narizito friorento num rosto de Primavera. Em baixo, no pavimento, está um pequeno grupo, donde, contra o hábito, não saem gritos, insultos nem protestos: o condutor, um agente de polícia, um rapazote e outros comparsas anónimos. O rapaz, ar de empregado sem categoria, orelhas transparentes e dobradas no rebordo superior (sinal de degenerescência?), olhos hesitantes e descoloridos de espanto, a boiar como cortiças na água, deve ter dezassete anos. Pálido, horrivelmente branco! É o «vilão».
Percebo agora que o condutor, embaraçado com a mala, e com mais alguma coisa que não se vê de fora, e nem ele próprio percebe o que seja, fala em tom de queixa para o agente. Apuro o meu ouvido de burguês curioso destes casos de rua, desta crónica viva que acidade escreve a cada hora. O rapazito, viajante assíduo nesta linha, fez-se passar durante muito tempo, fraudulentamente, por «assinante». Fingia que tinha passe, como qualquer pessoa de bem, com fundos, afazeres, vejam lá que esperteza! Desta vez caiu: «Há tempos que eu andava desconfiado… Mas a gente, na boa-fé!»
Uma pequena burla, hã? Isto diverte-me. A vida anda cheia destas mínimas fraudes, quase sempre impuníveis. E ele tem um ar de timidez honrada. Vão-se lá fiar! Quem lhe ensinaria a manha? Talvez ninguém. A natureza põe nas almas dos homens incoercíveis fermentos de maldade, germes invisíveis de pecado e transgressão. Concebeu solitariamente o seu delito, e vivia feliz de o praticar em segredo, como um bruxo ou alquimista. Tem a palidez dos responsáveis, a consciência morde-o com certeza, talvez o medo, e esboça uma tímida defesa.
O polícia, entretanto, vai tomando notas severas e definitivas, molha laboriosamente o lápis curto, mal aparado, nos beiços grossos. Não encara com o rapaz, que tem agora o ar dum passarito apanhado na rede. Interroga-o, pede nomes, moradas, elementos seguros para a complexidade dos autos. Ao virar-se, avisto-lhe os olhos negros, convergentes, congestivos, e penso involuntariamente se não serão talvez assim os olhos da Justiça, por isso lhos vendaram…
Vai-se juntando gente. Indiferentes como eu às origens secretas do drama, os passageiros protestam mais alto: «Não temos nada com isso! Levem-no prà esquadra, e acabou-se. Toca a andar!» (Há mesmo um que se ergue e puxa com decisão a campainha.)
Nem todos percebem o que se passa. Travam-se conversas entre desconhecidos, que o interesse de chegar a horas solidariza. E depois, não há como um acidente, um pequeno drama, para aproximar os homens, de outro modo alheios entre si. Um de cabelos brancos, vermelho (presumo que seja cobrador), diz assim: «Os condutores andam agora como cães em cima da gente!» E outro diz: «São ordens que eles têm!» Alguém, numa voz em que adivinho uma satisfação, relembra a morte daquele condutor, há tempos, agredido com um pontapé no baixo-ventre por um passageiro exaltado… Somos todos da «classe média», território social e economicamente indefinido: apesar disso, sinto em torno de mim um vago aplauso às violências contra estes homens de farda correcta, cor de pinhão, e boné agaloado, tão incapazes como nós de reagir contra as injustiças e as prepotências. O delito paira, anda disperso. Um fundo de maldade inconsciente em cada homem! E por fora, a indiferença. Porque foi que este rapaz burlou? porque mentiu? Olho-o de novo, e a palidez, a expressão dele impressionam-me. Implora, tem lágrimas nos olhos. É destes rapazolas que frequentam os cinemas baratos, de bairro excêntrico, onde a chuva canta num telheiro de zinco.
– Não foi por mal...
Desculpa tola! O agente acabou de tomar notas, importante, e o grupo movimenta-se. Afinal o rapaz vai preso. Segue connosco, e o condutor, pálido e trémulo do esforço de ser mau (segundo ele crê: de ser justo), trepa ao carro e dá duas violentas campainhadas. Partimos. O rapazote, de pé no estribo, suspenso dum balaústre ao lado do cívico imponente, agarra o sofretudo safado pelos ombros, contra o vento, e continua a implorar com os olhos lacrimejantes, a tartamudear súplicas incompreensíveis. E de repente, este público até agora indiferente começa a erguer os seus lamentos! Imaginem que o rapaz tem de estar no escritório daqui a dez minutos, quando não, adeus emprego! O condutor passa por nós e procura evitar o nosso olhar. Já pensaram no que é para ele a cadeia? A perda do salário, o desgosto da mãe… Que tremendo castigo! Não lhe basta a vergonha, o susto que apanhou? Sim, mas se amanhã recomeça? – Sentindo a nossa solidariedade, ele volta-se para o condutor, e este, horrorizado com a responsabilidade, pensa no dever, na Companhia, desvia os olhos e diz: «Isso agora é com o senhor guarda, não é comigo! Um homem tem que cumprir com a sua obrigação!» E o senhor guarda, olhando por cima das cabeças do público, compõe o cinturão com dignidade: «Isso não é comigo. Lá na esquadra veremos!»
O eléctrico larga-os numa paragem qualquer, e despede a nove. Não posso evitar um aperto na garganta e uma quase lágrima indiscreta. A minha vizinha da esquerda empalideceu, e os seus olhitos negros, abertos e espantados, não param. Todos os passageiros comentam agora, tardiamente condoídos, a sorte do pequeno. Amanhã, noutro carro, hei-de ouvi-los protestar, indignados, quando o tribunal, impotente para castigar este delito entre tantos, mandar em paz o empregadito sem emprego, mais amarelo e mais magro: «A Justiça é uma capa de ladrões!»
O que há de instável e contraditório nas nossas almas! Temos ao mesmo tempo o desejo colérico de punir, e o temor de punir. Queremos a repressão do crime, e a nossa vida está cheia de grandes e pequenos delitos escondidos. Se o condutor se esquece de nos cortar o bilhete, viajamos de graça, contentíssimos com a fraude (todos gostamos de fazer uma pirraça aos ingleses!), e aterrados com a ideia do vexame que seria se ele nos descobrisse. Chegamos a apear-nos antes do nosso destino, com uma amargura que anula o gozo da burla. No dia seguinte pagamos prontamente o bilhete, para apaziguar a consciência, e é o vizinho do lado que se «esquece», ou vira a cara a olhar as montras, ou mergulha na leitura do jornal. Então é que é ver a minha raiva: lanço-lhe de revés um olhar irónico, intencional, denunciante: «Bem te percebo o jogo, meu melro!» Ponho bem em evidência o meu bilhete (até lhe decoro o número, para evitar confusões), e, como ele continua impassível, cada vez que o condutor se detém a percorrer com um olhar de dúvida o nosso banco, fito-o com força magnética, a dizer intimamente: «Aqui à minha esquerda… Sim, aqui vai um!» E tenho a certeza de que raros entregam desinteressadamente à polícia a pulseira de brilhantes que encontraram a noite passada, ao sair do teatro. (Brilhantes, que exagero! Eu nunca tive a sorte de achar nada.) É por medo, é por medo. Se fosse uma nota de cem escudos…
Por isso eu nunca gostei de ser jurado. Já o fui duas vezes, e não me lembro de ter ajudado a condenar senão dois ou três criminosos repugnantes e um assassino. Condenar para quê, e com que direito? A Umbelina, então, diz-me assim: «Tu és agora algum anarquista?! Que ideia! Cumpre o teu dever, e deixa-te de esquisitices!» Para ela tudo são esquisitices.
Mas eu tenho cá as minhas razões. Imaginem que uma tarde, ao escurecer, entrei no Serras a comprar um charutinho para depois do jantar. Ainda não tinham acendido as luzes, por espírito de economia, suponho eu. O vendedor, muito solícito, abriu-me meia dúzia de caixas em cima do balcão, e virou-se a atender outro freguês. Naquela penumbra, oh senhor, não sei que vontade me deu de tirar três ou quatro charutos, e no fim pagar um só. Felizmente o patrão acendeu os lampiões (era no tempo do gás) e eu respirei fundo, e fiquei muito contente de continuar a ser um homem honrado. Paguei, vou a dar volta para sair, e que vejo eu? Um raio dum fedelho que me deita a mão à bengala de castão de prata, que eu tinha pendurado na borda do balcão, e abala a fugir pela rua abaixo! Largo atrás dele, agarra agarra, e se os populares mo não tiram das unhas partia-lhe o pau-ferro de estimação (presente do meu sogro) nos lombos.
Levaram-no preso. Nessa noite, acreditem, o charuto amargou-me como fel. Dormi mal e, logo pela manhã, fui à esquadra pedir que o pusessem em liberdade. Tinha sido uma tentação, disse eu, e eu estava na posse da bengala, e coisa e tal. Impossível: era um flagrante delito, e o preso já tinha ido para o Governo Civil, agora a Lei seguia os seus trâmites. O rapaz não se pôde afiançar, esteve meses no Limoeiro à espera de julgamento, e eu consegui esquecê-lo. Quando me chamaram a depor, no dia da audiência, declarei muito simplesmente que nada queria do réu, nem sequer o reconhecia, e que me parecia um exagero mandar um fedelho daquela idade para a cadeia por causa duma tentação gorada. O meritíssimo juiz nem me deu ouvidos: cascou-lhe quinze dias de prisão e multa (porque era a «primeira vez!») para lhe ficar de lembrança, levando em conta o tempo de prisão já sofrida, e eu, eu fiquei com o remorso de o ter precipitado no caminho do crime, só Deus sabe. Nunca hei-de esquecer o olhar de ódio que ele me lançou: já era o dum profissional!
E aqui está como nós somos.
Fracos perante a necessidade irremediável de punir, impotentes para prevenir os males que nos afligem colectivamente, somos duma ferocidade implacável quando estamos a sós. Condenaríamos à morte se não tivéssemos de suportar o olhar de censura do condenado. Cobardes!
De jornal aberto em frente e guardanapo ao pescoço, curvado sobre a cebolada do almoço, eu reclamo em família a pena capital, a prisão perpétua, o degredo, os trabalhos forçados, para os criminosos de que os faits-divers me dão todos os dias o rosário longo: quero sossego, quero ordem, quero decência. Burguês tímido, reverente, acobardado, por necessidade, imposição, conformismo ou medo, por uma transmissão atávica de humildade, incapaz de me revoltar abertamente contra o mal que me fazem, contra o mal que faço – sou duro no íntimo, e cruel. Quero Justiça intransigente, rectilínea e fria – e o meu coração dilui-se na piedade, como um torrão de açúcar no chá quente.
Punir (Seara Nova, 1928)

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