“Já não sou eu, mas outro que
mal acaba de começar”
Samuel Beckett
Da mesa onde
agora estou a escrever, sigo-me nesse discurso. Ou, antes, sigo-o a Ele desde
que entrou, lado a lado com a Edite, na recepção do hospital onde o esperava um
médico das nossas relações. Suponho que o reconheceu. Reconheceu-o com certeza
mas provavelmente só de figura, isolado de qualquer contexto. Ou não? «Sabe
quem eu sou?», perguntou-lhe o médico. «Sei», foi a resposta, «não me lembro é
do nome.»
Dito isto, nem
mais uma palavra. Subida ao Calvário num elevador carregado de macas com
doentes de olhos fechados (foi a imagem que eu fixei) e lá muito no alto, muito
no fim, uma voz de óculos cintilantes numa primeira observação: «O mais provável
é ter de ficar internado.»
E logo Ele muito
rápido: «Internado, não.» (Ai já se deixa ver que era ainda um último resto de
mim que protestava.)
Desse momento em
diante vi-o, de corredor em corredor, a ser conduzido aos puzzles da tecnologia
clínica, chapa a chapa, registo a registo, análises, electrocardiografias,
exames da fala e da escrita, um TAC, uma inspecção às carótidas, mas o que é
que eu estou a fazer aqui, perguntava ele quando o deixavam sozinho com a
mulher.
Se nessa altura
ainda falava com clareza ou se já tinha começado a desmantelar as palavras com
o silabar consonântico que toda a gente fingia ignorar, não sei, não posso
dizer. Mas por intuição ou pelo quer que fosse ele devia ter alguma percepção
dessa afasia porque muitas vezes cortava a frase ou parava de se exprimir,
fazendo um gesto de desistência com um sorriso de resignação. Deixem, não vale
a pena, era o que aquilo significava. Dava a ideia de que por enquanto sabia o
que pretendia comunicar mas que já não comandava as palavras.
Continuo a
segui-lo. A princípio houve uma ou outra situação em que nos confundimos e
fomos um só. Situações raríssimas, devo acrescentar, breves clarões de
consciência. Mas em menos de nada já ele se tinha perdido de mim e ia, hospital
fora, a arrastar uma névoa.
O relatório
neurológico foi terminante: acidente vascular cerebral de gravidade muito
acentuada, um coágulo de sangue que tinha subido (do coração?) até à zona nobre
do cérebro, bloqueando duramente a artéria. Não era um problema hemorrágico,
antes fosse, e por isso não havia o recurso à cirurgia com largas perspectivas
de solução, explicou à Edite um especialista do Serviço de Neurologia. Assim,
acrescentou ele, a situação apresentava-se bastante difícil, um caso de
isquemia com recuperação lenta e frequentemente incompleta. Do ponto de vista
motor nada que justificasse preocupações, o doente bastava-se a si próprio. Mas
o centro da fala e da escrita estava profundamente afectado e podia conduzir a
uma sobrevivência em incomunicabilidade total.
Incomunicabilidade,
pois. Incomunicabilidade total. Nem voz nem escrita e nem leitura tão-pouco.
Morte cerebral, foi com esta expressão que a Agência Lusa passou a notícia à imprensa
para o outro lado dos muros do Hospital de Santa Maria. Morte branca, aponto eu
ao alto desta página em que estou a reconstituir passo a passo esse Outro que,
de mão na mão com a Edite, se encaminha para o quarto onde vai ser internado.
Vai sem ver,
percebe-se. Vai, foi. Seguiu. E quando lá chegou não sei se já estava entregue
por inteiro à sem-vontade que o alheava do que acontecia nele e à volta dele,
não sei, não faço ideia. Mas, estivesse ou não estivesse, no quarto que lhe
tinham destinado havia dois vultos a espiá-lo em duas camas. Viam-no também sob
lençóis mas de rosto ao alto e a sorrir. A sorrir? Seria um traço pálido na
palidez geral que se supôs dirigido à enfermeira que o estava a ligar ao soro,
embora não a olhasse sequer. Ou um sorriso para com ele e mais ninguém, outra
hipótese. De qualquer maneira estava imóvel e a sorrir, imagine-se. Assim o
viam os dois doentes com quem ele ia ficar e assim o estou eu a descrever,
passados dois anos sobre essa hora: branco, branco, em luz gelada e com a
mulher à cabeceira a segurar-lhe a mão. Preso a ela mas todo voltado para a
distância.
Assim, também, o
foi encontrar uma jovem médica que o veio observar com as primeiras perguntas
no tom de quem vem de recado pensado.
Perguntas a
aviar, é bom que se diga, pelo menos foi o que lhe pareceu a ele uma abordagem
daquelas, e como tal, com respostas prontas é que a devia despachar. Estropiadas
ou não, respostas prontas e o rosto eternamente apontado para uma vastidão
qualquer. Seria realmente uma vastidão, um espaço ermo, para onde ele olhava?
Pouco importa. Horizonte, interrogação ou nada, era nessa direcção que ele
estava a responder ao exame e infelizmente com o descaso e a irresponsabilidade
que eram de prever, parecia anotar a médica pela maneira de o escutar, pelo
insólito dos desacertos com que ele correspondia ao diagnóstico que lhe tinha
sido atribuído, confirmava a médica com o silêncio do olhar, claro, tudo certo,
tudo conforme, «Agora», despediu-se ela, «o que é preciso é pôr-se bom depressa
para voltar a escrever. De acordo?»
Escrever?
O que restaria de
mim no homem que ficou para ali estendido à espera de coisa nenhuma?
Deve ser uma
abstracção nebulosa estar-se assim, numa ilha de náufragos, preso ao soro que
nos chega por um fio ligado a uma hipótese de vida. Três náufragos ao todo: não
esquecer que naquele quarto há ainda dois vultos tão nulos que os toma como
ausentes. Insisto nisto porque aos olhos dele essas criaturas devem ser duas
sombras, pouco mais. Duas sombras espalmadas em dois leitos de hospital, a
observá-lo para o decifrarem, saber de quem se trata, qual o seu porquê e o seu
rumo. Uma dessas sombras durante a noite ronca estrepitosamente, mas o Outro
que eu sou ali dará por isso? Se der, esquece.
Deixaram-no atrás
duma janela sem paisagem, em tempo velado, oco. Quando menos espero descubro
que alguém se aproxima dele com uma ficha de doente na mão. Outra médica.
Fala-lhe com simpatia atenta, perguntas sobre perguntas. Aponta-lhe a chávena
que está em cima da mesa-de-cabeceira: «Que é isto?» Pára. Espera, a olhá-lo. A
seguir uma esferográfica: «E isto? E isto?», pergunta ainda, com uma chave ou
outra coisa na mão.
Ele percebe que o
estão a investigar, por mais anulado que se encontre não se considera tão à
margem como isso. Percebe, não tenho dúvida (recordo essa minha reacção no
primeiro interrogatório) mas o que ele ignora é que já não identifica os
objectos que lhe apresentam: um lenço, um anel, a moeda tirada ao acaso do
bolso da bata, na prática objectos mais que simples da circulação comum, e
principalmente relógios, relógios de pulso, os ponteiros e a leitura das horas.
Pois, relógios. O Outro de mim naturalmente que os conhece como peças,
instrumentos, sem interior, sem razão,
mas eu diria que só de vista porque os isolara de referências. Exactamente como
lhe acontecia com as pessoas que outrora lhe tinham sido mais próximas.
Tempo depois,
quando a família e os amigos me descreveram a passear de alma ausente pelo
anoitecer da memória, é que eu soube como era desvairada a nomenclatura que ele
atribuía aos objectos questionados ou àqueles que, de longe em longe, pretendia
enunciar. «Simosos» (?), por exemplo, funcionava a vários significados. Tanto
podia ser «gilete» como «óculos» ou «arrastadeira», dependia de qualquer
indecisão de momento, quer-me parecer. «Cachimbo», uma peça que nunca na vida
teve alguma coisa a ver comigo, tomou-a ele como sinónimo de «chinelas,
chinelas de quarto». E, como estas, várias outras designações de sentido
aleatório ou incapazes de ser traduzidas porque inclusivamente as pronunciava
com distorções.
Se não o
entendiam quando perguntava esquecia e passava adiante (remetia-se ao seu
horizonte descambado). Mas quando era perguntado (nos exames iniciais da memória,
é daí que me vem essa lembrança) entendia ou intuía que o estavam a
experimentar em perspicácias ingénuas e com o seu quê de ridículo. Eram um
estendal de desperdícios mais que vistos e sabidos, aqueles testes. Um jogo em
faz-de-conta frustrado logo à partida, pensaria ele naquela altura e quem sabe
se não sorriria tristemente por dentro. No fundo, essa atitude não era mais que
a costumada desconfiança do doente em terreno de risco e de valores
desconhecidos, a sempre prevenção contra a subestima ou a humilhação ao
julgar-se avaliado por um teste primaríssimo em que colaborava, que remédio,
com uma complacência resignada e até com uma sombra de ironia. Ironia, seria
nisso que ele tentava compensar-se?
Determinadamente,
não. Assumir a observação que pressupõe a ironia com a captação de sinais que
ela requer não me parece fácil nas condições em que o meu Outro divagava. No
entanto, muito para com ele e para comigo, houve pelo menos uma vez em que essa
intenção teve lugar. Com alguma clareza – ou quase – e de tal modo que ainda
hoje tenho como certo que mesmo num farrapo de indivíduo a despojar-se de
memória (e portanto de imaginação) podem despontar por vezes fragmentos de
ironia como instintos culturais, se assim lhes é possível chamar, que são resíduos
do passado que ele apagou. Será uma ironia coitada, não digo que não, mas de
qualquer modo uma ironia. Um esforço de resposta muito para ele, muito para se
compensar da situação de desvantagem em que se pressente. Um esbracejar do seu
lado crítico, direi agora, um esbracejar. Um iludir o caos da irreflexão.
A prova dum
impulso de afirmação deste tipo está na minha resposta ao exercício que um dia
me propôs a neurologista que dirigia o meu tratamento («Onze menos nove quantos
são?») apresentando-lhe a primeira solução – engenhosa, pretendia eu – que me
veio à cabeça: «Nada, senhora doutora. Qualquer coisa noves fora é nada.»
(O segredar da
infância a assaltar-me numa brincadeira de tabuada, apetece-me anotar neste
ponto da minha narração. Eu há anos, há séculos, na Escola Primária do Largo do
Leão, em Lisboa, a declamar o «nove,
noves fora, nada».)
Acrescento ao
comentário que foi no decorrer desse interrogatório que fixei como uma marca
pessoalíssima daquela médica a correia bordada a cores no relógio que ela
usava.
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