“A notícia da minha morte foi um
exagero.”
Até que certa
manhã acordo em claridade aberta com gargalhadas a creditarem à minha volta.
Dum momento para o outro, o sentido de presença. E tudo concreto, tudo vivo. O
quarto: para lá da janela, o palácio de cristais dourados (que era o Hotel
Penta, quem diria) e à minha frente dois vultos que me faziam companhia a
desafiarem-se à gargalhada de cama para cama, um deles com um braço paralisado
ao longo do corpo, o outro um velho de auscultadores ao pescoço, com um walkman debaixo do lençol. Cada
qual a rir, a rir, e a acenar com um lagarto de plástico que soltava uma língua
em tremular de labareda.
Acredite-se ou
não, naquele quarto estavam dois candidatos à morte no maior dos carnavais.
Dois passardes
arruinados, pelo menos quanto ao aspecto. E eu, no meio de tanto riso, descobri
(sem espanto, sem assombro, custa a crer) que acabara de me libertar duma
doença mais que maldita, duma cegueira ou dum apagamento por onde andara sem
norte e sem dias e que numa viragem sem aviso pessoas e luz, palavras e
matéria, tudo tinha voltado à realidade. Existência palpável, o mundo deixara
de ser anónimo. Agora o roupão e os meus óculos apresentavam-se como evidências
familiares e até o lugar onde eu me encontrava parecia circunstancial. Um tanto
ao acaso, avancei para o lavatório e ao aproximar-me reconheci-me no espelho:
Eu. Eu, saído da névoa, a ir ao encontro de mim na superfície dum vidro
emoldurado e com a sensação ou com a certeza (ah sim, com a certeza, a mais que
certeza) de que encontrara a memória. Incrível, a memória tinha reaparecido, o
coágulo de sangue, esse selo que me estrangulara o cérebro, diluíra-se no
segredo do corpo e eis-me livre, renascido, diante de dois estranhos que não
paravam de improvisar malícias entre si.
Dois passarões
arruinados. Quanto mais os ouço mais os vejo nessa figura. Em regime rigoroso
aguardavam que lhes fosse marcada a hora de serem operados ao cérebro («tirar a
tampa» ou «arejar a mioleira», como eles diziam), um assunto em que o do braço
caído se mostrava confiante e quase com vaidade. Estava destinado ao Professor
A («destinado», a expressão dele era essa) e na realidade o prestigio
científico daquele neurocirurgião representava um privilégio e uma garantia que
o doente não se cansava de proclamar diante do seu companheiro dos
auscultadores.
O que o
inquietava era que o professor não lhe aparecia, andava por congressos ou por
aulas magnas e quem sabe se àquela hora não estaria, rodeado de toda a sua
equipa, a operar uma alma desentendida ao som de marchas militares. Marchas
militares, porque não? E quem dizia marchas militares, dizia sonatas ou grandes
sinfonias, um cirurgião de toda a autoridade tinha direito aos seus caprichos,
esclarecia o meu vizinho do braço esquecido. Ramires de seu nome e construtor
civil apessoado, dispunha de relações nos hospitais e na classe médica e
afirmava-se ao corrente de tudo e mais alguma coisa que respeitasse ao
Professor. Contava-o e sublinhava-o numa toada a anuviar para o lendário, e eu,
de retorno ao mundo dos vivos, ouvia-o com prazer.
Mas mais do que
eu ouvia-o o doente da outra cama que ignorava quais as mãozinhas que lhe iriam
trabalhar o cérebro. Caso para saber se o entregariam a um remendão de palpites
azarentos, ninguém estava livre disso, ou a um cirurgião acabado de sair das
fraldas, uma vez que sem sacrificados não há principiante que chegue a bem
sucedido. E uma doutora? Também era capaz de haver gente dessa, doutoras de
esquartejar. Nos tempos que corriam as mulheres não tinham regra nem bandeira,
embora estivesse mais que provado que doutoras a cortar e a coser só na costura
de alinhavos, ou não seria assim? «Não se preocupe, amigo Martinho»,
sossegava-o o outro a transbordar de generosidade, «isto da mioleira é só renda
aos labirintos e para de lá sair o melhor doutor não faz mais que fechar os
olhos e seja o que Deus quiser.» E o Martinho: «Estou a ver, estou a ver. Um
bom sacaninha é que você me saiu, amigo Ramires.»
E riam a
bandeiras despregadas, cada qual nos seus lençóis do medo.
Pelo que vim a
saber, este Martinho era comerciante na Nazaré. Velho e
sem família que se lhe conhecesse, explorava uma casa de bar e snooker que tinha bem à vista,
contou ele, o aviso de
PROIBIDA A ENTRADA A MENORES
OU A ADULTOS AO COLO
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