Demoro-me um pouco sobre as fotocópias da caligrafia desse homem nos testes
da fala e da escrita que tenho à minha frente. São um desfiar de caracteres
cuneiformes traçados a desdém que ele nem se deve ter dado ao trabalho de
olhar. Dessa caligrafia enlouquecida só nas últimas provas é que a assinatura
tem alguma aproximação com a que me era verdadeira; nas outras mostra-se
cerrada, apenas o J se mantém
reconhecível. O J de José. A letra
menos espontânea da minha identificação.
Sem nome e sem
assinatura este que eu sou entre paredes dum hospital encontra-se numa paisagem
anónima com gente anónima (o pessoal, os visitantes). Sem nome, vejam só. E
contudo, «os nomes penetram-nos até aos ossos», afirmava Hemingway, esse
viajante das mortes, em The Garden of Eden. Simplesmente, no meu homem sem memória
tanto o nome que lhe pertencera como o das personagens que lhe cobriram a
existência tinham enquistado e desfizeram-se em pó. Apesar disso, uma vez por
outra ainda dava mostras de procurar recuperá-los:
«Eu tenho filhos,
não tenho?» pergunta ele à Edite. (Eu. Uma vez mais o sujeito solitário,
repare-se.) «Como é que eles se chamam?»
«Temos duas
filhas. A Ana e a Rita», responde ela.
«Rua?»
«Não. Rita», diz
a Edite.
E ele: «Pois,
Rua.» (Pensava ter dito Rita, é evidente.) «Então e o António Nuno?»
Edite: «O António
Nuno era teu irmão, morreu há muito tempo. Nós, além das filhas, temos dois
netos.»
Ele: «Pois, dois
netos. Como é que eles se chamam?»
Edite: «Joana e
Rui.»
Ele: «Rui. Que nome
tão feio.»
Os nomes. A
preocupação de se reconhecer vivo, identificando-se pela identificação dos
outros. Durante a travessia das trevas brancas os diálogos com a Edite foram em
grande parte uma busca de referências, um inquérito em total inconsciência na
tentativa de se recapitular para voltar a ser indivíduo com passado. A família
e os visitantes que lhe apareciam quem eram? Donde vinham e que ligações tinham
com ele? O pior é que rarissimamente se preocupava em os situar na sua vida
(tinha aceitado que não era capaz, foi a impressão com que eu fiquei até hoje)
e, quando muito, punha-se a olhá-los sem os ver.
Ali o tenho,
anulado e discreto. Ali me tenho, com a Edite à cabeceira. No quarto onde o
arrumaram há os tais dois vultos a comunicarem de cama para cama, duas sombras
falantes, se bem que as sombras mesmo que falem nunca têm voz. De modo que
permanece deserto e sem sobressaltas, a dias vagos e sonos limpos. Está à mercê
dum coágulo que lhe trava a circulação do cérebro e anuncia um fim assustador mas
ele desconhece isso, não pressente sequer. Está distante, está longe. Que
longe, meu Deus, pensará a Edite.
De resto, a
desmemória não só o isolou da realidade objectiva como o destituiu, pode
dizer-se, de sentimentos. Perdeu os estímulos de aproximação porque, sem a consciência
da identidade que nos posiciona e nos define num framework de experiências e de valores, ninguém pode ser
sensível à valia humana do semelhante. As suas virtudes ou os seus males só
podem ser reconhecidos como significantes sentimentais em contraponto com a
consciência da nossa identidade, isto é, com a tradição da comunicação que
praticamos com a sociedade e com a nossa memória cultural. A ele tal coisa
estava-lhe vedada, memória onde tu já ias. Daí a total indiferença em que
navegava à tona das comoções e dos afectos, uma indiferença extrema que,
sucedesse o que sucedesse, não o levava a perturbar nem ao de leve a disciplina
ambiente. Na verdade, não sabia de todo onde se encontrava, a razão era essa.
Atentem, atentem
nele: chegam amigos a visitá-lo mas ficam-lhe no limiar da recordação. Pelo
desfocar da vista, por certas expressões evasivas ou por certas insensibilidades,
percebe-se que não é capaz de os localizar com clareza. A um deles, sei eu que
lhe viu os olhos toldados de lágrimas e que teve um impensável vislumbre de
estranheza, o que era aquilo, parecia perguntar – mas frio, terrivelmente frio.
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