sábado, 27 de outubro de 2012

De Profundis, Valsa Lenta [4]

Demoro-me um pouco sobre as fotocópias da caligrafia desse homem nos testes da fala e da escrita que tenho à minha frente. São um desfiar de caracteres cuneiformes traçados a desdém que ele nem se deve ter dado ao trabalho de olhar. Dessa caligrafia enlouquecida só nas últimas provas é que a assinatura tem alguma aproximação com a que me era verdadeira; nas outras mostra-se cerrada, apenas o J se mantém reconhecível. O J de José. A letra menos espontânea da minha identificação.
Sem nome e sem assinatura este que eu sou entre paredes dum hospital encontra-se numa paisagem anónima com gente anónima (o pessoal, os visitantes). Sem nome, vejam só. E contudo, «os nomes penetram-nos até aos ossos», afirmava Hemingway, esse viajante das mortes, em The Garden of Eden. Simplesmente, no meu homem sem memória tanto o nome que lhe pertencera como o das personagens que lhe cobriram a existência tinham enquistado e desfizeram-se em pó. Apesar disso, uma vez por outra ainda dava mostras de procurar recuperá-los:
«Eu tenho filhos, não tenho?» pergunta ele à Edite. (Eu. Uma vez mais o sujeito solitário, repare-se.) «Como é que eles se chamam?»
«Temos duas filhas. A Ana e a Rita», responde ela.
«Rua?»
«Não. Rita», diz a Edite.
E ele: «Pois, Rua.» (Pensava ter dito Rita, é evidente.) «Então e o António Nuno?»
Edite: «O António Nuno era teu irmão, morreu há muito tempo. Nós, além das filhas, temos dois netos.»
Ele: «Pois, dois netos. Como é que eles se chamam?»
Edite: «Joana e Rui.»
Ele: «Rui. Que nome tão feio.»
Os nomes. A preocupação de se reconhecer vivo, identificando-se pela identificação dos outros. Durante a travessia das trevas brancas os diálogos com a Edite foram em grande parte uma busca de referências, um inquérito em total inconsciência na tentativa de se recapitular para voltar a ser indivíduo com passado. A família e os visitantes que lhe apareciam quem eram? Donde vinham e que ligações tinham com ele? O pior é que rarissimamente se preocupava em os situar na sua vida (tinha aceitado que não era capaz, foi a impressão com que eu fiquei até hoje) e, quando muito, punha-se a olhá-los sem os ver.
Ali o tenho, anulado e discreto. Ali me tenho, com a Edite à cabeceira. No quarto onde o arrumaram há os tais dois vultos a comunicarem de cama para cama, duas sombras falantes, se bem que as sombras mesmo que falem nunca têm voz. De modo que permanece deserto e sem sobressaltas, a dias vagos e sonos limpos. Está à mercê dum coágulo que lhe trava a circulação do cérebro e anuncia um fim assustador mas ele desconhece isso, não pressente sequer. Está distante, está longe. Que longe, meu Deus, pensará a Edite.
De resto, a desmemória não só o isolou da realidade objectiva como o destituiu, pode dizer-se, de sentimentos. Perdeu os estímulos de aproximação porque, sem a consciência da identidade que nos posiciona e nos define num framework de experiências e de valores, ninguém pode ser sensível à valia humana do semelhante. As suas virtudes ou os seus males só podem ser reconhecidos como significantes sentimentais em contraponto com a consciência da nossa identidade, isto é, com a tradição da comunicação que praticamos com a sociedade e com a nossa memória cultural. A ele tal coisa estava-lhe vedada, memória onde tu já ias. Daí a total indiferença em que navegava à tona das comoções e dos afectos, uma indiferença extrema que, sucedesse o que sucedesse, não o levava a perturbar nem ao de leve a disciplina ambiente. Na verdade, não sabia de todo onde se encontrava, a razão era essa.
Atentem, atentem nele: chegam amigos a visitá-lo mas ficam-lhe no limiar da recordação. Pelo desfocar da vista, por certas expressões evasivas ou por certas insensibilidades, percebe-se que não é capaz de os localizar com clareza. A um deles, sei eu que lhe viu os olhos toldados de lágrimas e que teve um impensável vislumbre de estranheza, o que era aquilo, parecia perguntar – mas frio, terrivelmente frio.

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