terça-feira, 2 de outubro de 2012

O MILAGRE

Eu não ia muito em milagres. Mas no pretérito dia 8 de Janeiro assisti a um fenómeno que deixou o meu cepticismo um pouco abalado. Foi o caso.
As aldeias circunjacentes à albufeira dos Pisões acordaram debaixo dum espesso nevoeiro ribeirinho.
Nem todos saberão o que é que eu quero dizer com este ribeirinho. Pois não tem nada que saber. Ribeirinho vem de Ribeira. E Ribeira, nos meus tempos de aprendiz de almocreve, era tudo o que ficava para lá da Serra do Pindo: «Não fora o Pindo e a Panadeira, todos os burros iam à Ribeira.» Assim nem todos. Porque subir das ribas do Tâmega ao Planalto Barrosão com quatro almudes de vinho em odres sobre a albarda, o pipo da aguardente num dos alforges e a borracha e a merenda no outro, não era para qualquer burro. Exigia cascos rijos e nem todos os tinham.
Hoje já ninguém vai ao vinho à Ribeira. De burro, entenda-se. A vida mudou. E os fenómenos atmosféricos também.
No meu tempo de rapaz dizia-se: Janeiro, estropeadeiro. E a razão está à vista. De dia brilhava o sol e o chão amolecia. De noite caiam grandes geadas e a lama dos caminhos solidificava. Como toda a minha gente usava socos ferrados, de manhã era uma estropeada nessas ruas que aturdia tudo.
Hoje o sol continua a brilhar de dia e as grandes geadas a caírem de noite. Mas como já ninguém usa tamancos ferrados, os amantes das grandes manhãs na cama podem dormir descansados.
Outra recordação que guardo desses Janeiros de sol tios meus tempos de garoto e pastor de cabras, era a de subir ao Coto do Seixo, o pico mais alto do termo de Peireses, e avistar, para nascente, a Veiga de Chaves debaixo de nevoeiro. Visto assim de longe e de alto, aquilo até era bonito: um mar de algodão em rama muito quieto e alvadio com os cocurutos dos montes a sobressaírem dele como ilhotas,
Mas se, em dias desses, um homem tinha de ir à Ribeira, ao aproximar-se de Chaves, era como sair duma casa inundada de sol e mergulhar numa câmara frigorífica. Até o pingo nos cristalizava na ponta do nariz.
Felizmente, nunca me lembro de, nesses meus tempos de garoto e pastor de cabras, esse nevoeiro ribeirinho transvazar para Barroso. Quando muito, atrevia-se a espreitar à portela do Fontão, sobranceira a Boticas, e daí não passava.
Com a construção das barragens, tudo se modificou. E agora, por mal dos nossos pecados, acordamos frequentemente debaixo desse estuporado nevoeiro dos vales.
Quando acordo e o pressinto pelas frinchas da janela, mal me atrevo a deitar o nariz fora da porta.
Mas no pretérito dia 8 de Janeiro, eu tinha um compromisso: a Festa da Música de Parafita.
Não era um nevoeirozito qualquer que me ia impedir de ir a Parafita. Era o que faltava. Perder o calor humano da Festa de Parafita? Nem pensar,
Meti-me no carro e ala que se faz tarde.
Estavam ainda na missa. Cerimónia a grande instrumental, a cinco padres, muito povo.
Ombro em aríete, consegui um lugarzinho dentro da capela.
Fora, o nevoeiro continuava cada vez mais assapado e álgido.
Ite, missa est, os músicos empunharam os instrumentos e irromperam rua fora num alegro, vivace, andante, à Parafita.
E foi então que o milagre se deu. De repente, o nevoeiro levantou e o sol bateu-nos em cheio no rosto. 

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