Eu não ia muito em
milagres. Mas no pretérito dia 8 de Janeiro assisti a um fenómeno que deixou o
meu cepticismo um pouco abalado. Foi o caso.
As aldeias
circunjacentes à albufeira dos Pisões
acordaram debaixo dum espesso nevoeiro ribeirinho.
Nem todos saberão o
que é que eu quero dizer com este ribeirinho. Pois não tem nada que saber.
Ribeirinho vem de Ribeira. E Ribeira, nos meus tempos de aprendiz de
almocreve, era tudo o que ficava para lá da Serra do Pindo: «Não fora o Pindo e
a Panadeira, todos os burros iam à Ribeira.» Assim nem todos. Porque subir das
ribas do Tâmega
ao Planalto Barrosão
com quatro almudes de vinho em odres sobre a albarda, o pipo da aguardente num
dos alforges e a borracha e a merenda no outro, não era para qualquer burro.
Exigia cascos rijos e nem todos os tinham.
Hoje já ninguém vai ao
vinho à Ribeira. De burro,
entenda-se. A vida mudou. E os fenómenos atmosféricos também.
No meu tempo de rapaz
dizia-se: Janeiro, estropeadeiro. E a
razão está à vista. De dia brilhava o sol e o chão amolecia. De noite caiam
grandes geadas e a lama dos caminhos solidificava. Como toda a minha gente
usava socos ferrados, de manhã era uma estropeada nessas ruas que aturdia tudo.
Hoje o sol continua a
brilhar de dia e as grandes geadas a caírem de noite. Mas como já ninguém usa
tamancos ferrados, os amantes das grandes manhãs na cama podem dormir
descansados.
Outra recordação que
guardo desses Janeiros de sol tios meus tempos de garoto e pastor de cabras,
era a de subir ao Coto do Seixo, o pico mais alto do termo de Peireses,
e avistar, para nascente, a Veiga de Chaves
debaixo de nevoeiro. Visto assim de longe e de alto, aquilo até era bonito: um
mar de algodão em rama muito quieto e alvadio com os cocurutos dos montes a
sobressaírem dele como ilhotas,
Mas se, em dias
desses, um homem tinha de ir à Ribeira, ao aproximar-se de Chaves, era como sair
duma casa inundada de sol e mergulhar numa câmara frigorífica. Até o pingo nos
cristalizava na ponta do nariz.
Felizmente, nunca me
lembro de, nesses meus tempos de garoto e pastor de cabras, esse nevoeiro
ribeirinho transvazar para Barroso. Quando
muito, atrevia-se a espreitar à portela do Fontão, sobranceira a Boticas, e daí não passava.
Com a construção das
barragens, tudo se modificou. E agora, por mal dos nossos pecados, acordamos
frequentemente debaixo desse estuporado nevoeiro dos vales.
Quando acordo e o
pressinto pelas frinchas da janela, mal me atrevo a deitar o nariz fora da
porta.
Mas no pretérito dia 8
de Janeiro, eu tinha um compromisso: a Festa
da Música de Parafita.
Não era um
nevoeirozito qualquer que me ia impedir de ir a Parafita. Era o que faltava.
Perder o calor humano da Festa de Parafita? Nem pensar,
Meti-me no carro e ala
que se faz tarde.
Estavam ainda na
missa. Cerimónia a grande instrumental, a cinco padres, muito povo.
Ombro em aríete,
consegui um lugarzinho dentro da capela.
Fora, o nevoeiro
continuava cada vez mais assapado e álgido.
Ite, missa est,
os músicos empunharam os instrumentos e irromperam rua fora num alegro, vivace,
andante, à Parafita.
E foi então que o
milagre se deu. De repente, o nevoeiro levantou e o sol bateu-nos em cheio no
rosto.
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