Ontem o meu sobrinho, que está de férias, disse-me:
– Amanhã é a Feira do Prémio.
– No meu tempo era em Junho!
– Passaram-na para Agosto.
– Por causa dos emigrantes?
– Claro.
– Anda tudo ao mesmo.
– O tio não vai lá?
– Não me puxa o sangue.
Mas já me puxou, e de que maneira. Era
uma festa, a Feira do Prémio.
Indubitavelmente a mais concorrida e colorida do ano.
Tudo à pata, num alevante, por aí fora,
gentes e animais, velhos e novos, montes e vales, caminhos e atalhos,
alor de romaria. “Para onde vais Maria?” “Para a festa!”
Nesse tempo, um primeiro lugar na Feira do Prémio correspondia a
uma medalha de oiro nos Jogos Olímpicos. Aldeias e lavradores passavam a vida a
suspirar por ele. Quem uma vez o abichasse, nunca mais era pobre. Pelo menos de
presunção e água benta.
Da minha lembrança, Peireses
teve apenas um boi-do-povo premiado.
E, se o teve, a mim, em boa parte, o fica a dever.
Se um dia a epopeia desta Toscana
se vier a fazer, espero que, por este sublime
feito, os Virgílios
indígenas se não esqueçam de incluir
o meu nome entre os Eneias
cá dos sítios. E como o seguro morreu de velho, apresso-me a
registar para a posteridade esta bela página da história de Peireses e da minha obscura
biografia.
Aí por 1939, era eu um pistolante de
dente voraz, olho guicho e pé leve, a quem nada metia medo –
gaba-te cesta que vais para a vindima. Véspera
da Feira do Prémio, um tio meu, ao tempo macho dominante
entre os leões cá da terra, chamou-me de parte e disse-me:
– Vais ali num instante à Vila e dizes ao Filipe
Serralheiro que me inscreva o boi para amanhã. Vais
assim mesmo, para ninguém desconfiar.
Assim mesmo, roto, sujo e descalço. Mas
eu era, como disse, um pistolante de cara imberbe e desavergonhado. Corri a
Montalegre, abordei o Filipe, vulgarmente conhecido por
Filipe Carteiro, por ser
este o seu ofício, e disse-lhe:
– Ó sor Folipo? Meu tio António pede o favor de lhe inscrever o
boi de Peireses para amanhã.
– Ai tu és sobrinho do António Marinheiro? Filho
do Manuel?
– Sim senhor.
– Está bem, rapaz. Diz ao teu tio que pode
trazer o galhardo à vontade.
Cumprida esta missão, julguei-me fora da jogada.
Mas não estava. Meu tio levou-me para a adega e, entre dois
copos de maduro tinto e umas lascas de bacalhau cru, falou-me de homem para
homem:
– Andam para aí uns merdas a quererem endireitar-se
comigo, mas eu depressa lhos meto na virilha.
Fiz uma proposta aos cabos para levarmos o boi ao prémio. E os tipos,
só para me fazerem à raiva, disseram que não. Que o boi não está
convenientemente tratado, que ainda é muito novo, que mais isto e aquilo.
Mas eu, quando se me mete uma coisa na cabeça, vou com ela até
ao fim, nem que para isso tenha de enfrentar o diabo mais velho.
– E eu que o ajudo, tio! Conte comigo!
– Por isso é que eu te convoquei. Toma
atenção. Amanhã, ao nascer do sol, deitas as vacas para
o lameiro do Crasto. Depois, lá para as oito, vais à Lama e dizes
ao João Sapateiro que precisas do boi para o deitares a uma vaca. Fazes que o
tocas para o Crasto e bates com ele em Montalegre.
– Ohl, tio! Mas eu não vou para a feira neste aparato...
– Não te aflijas. Eu levo-te uma camisa lavada e
as alpergatas.
– Isso já é outro falar.
O João Sapateiro era o pastor do boi. Entregou-mo
sem qualquer desconfiança.
Quando irrompi Toural dentro,
roto e descalço, varapau ao alto, boi à minha frente e tudo de
boca aberta a olhar para mim, não garanto mas aposto, que nem um pavão me
levaria a melhor em garbo e prosápia.
À entrada do recinto reservado aos concorrentes,
um figuro de papel na mão perguntou-me
donde era o boi, se estava inscrito, em nome de quem e outros quesitos.
A tudo respondi com língua expedita.
– Toca para acolá – disse, indicando-me
o lugar destinado aos bois.
Já lá estava uma meia dúzia deles, de
rabo voltado para o arame da cerca e cornadura para o interior. Todos eles
tinham mais do que um guarda. Foi o que me valeu senão
o de Peireses armava logo ali zaragata. Ajudaram-me
a colocá-lo no sítio.
Estava eu a coçar com o ponta do pau o boi entre os cornos para
ele levantar a cabeça, vem de lá o ti Pires a espirrar fumo pelas ventas e
grita-me:
– Quem te autorizou a trazer o boi para aqui,
rapaz?
– O meu tio.
– Neste preparo?! E olha que tu também estás bem
preparado, não haja dúvida... Mas que dois malucos...
Atrás do ti Pires, outros
vizinhos vieram, dispostos a fazer e acontecer. Mas eu aguentei firme, vergueiro
em esquadria.
– O boi daqui não sai!
– P teu tio?
– Ele aí vem.
Meu tio que eu já lobrigara a vigiar-me de longe, aproximou-se,
casaco pendente do ombro esquerdo, vara
na mão direita, chapéu braguês atirado para a nuca,
passo de quem sabe a terra que pisa. A vara era de marmelo.
Cientes da facilidade com que ele a transformava em de
escaha-pessegueiro, os contestatários recolheram
a língua à bainha. Meu
tio entregou-me um saquitel que trazia dissimulado debaixo do casaco e disse-me:
– Vai aí atrás duma parede e muda de roupa.
Quando me vi de camisa lavada e alpergatas espanholas nos pés,
dei um pulo de contente e outro à Rua Direita, a qual,
aos dias de feira, mais parecia um Mercado Persa.
Perdi-me a olhar para as tendas
e para as moças. Quando regressei ao recinto do prémio, atrás da Câmara,
já o júri tinha avaliado os concorrentes.
– Então? – perguntei.
– Parece-me que estamos codilhados – respondeu meu tio.
– Porquê?
– Está aí o boi da Vila e o Presidente da Câmara
não larga o júri...
E meu tio não tirava os olhos da mesa. De repente disse-me:
– Tiremos daqui o boi. Anda
lá à frente.
Nisto vem de lá o veterinário a correr:
– Ó Marinheiro? Ó Marinheiro?
Um momento. Deixe estar o boi.
– O senhor doutor veja lá o que diz!
– Deixe estar o boi, digo-lho eu.
Voltámos para o lugar. Reparei
que a vara de marmeleiro tremia ligeiramente na mão de meu tio.
“Ainda vai haver aqui mostarda” – disse para comigo.
Felizmente não houve. O
veterinário cumpriu a palavra. Peireses em primeiro lugar.
Como que por milagre, acorreu o ti Pires, e, com ele, todos os
vizinhos:
– Viva Peireses! Viva o Marinheiro!
Todo o júri veio cumprimentar meu tio.
– Agora, para tudo acabar em bem, vamos chegar os bois – propôs
o Presidente da Câmara.
“O que tu queres é desforrar-te...» – disse
para com os meus botões.
– Isso não depende só de mim. Tenho de ouvir os
meus vizinhos – respondeu meu tio.
– O que o Marinheiro disser
é o que eles fazem.
– Claro que chegamos.
Porque não havemos de chegar? – acudiu
o ti Pires, que não perdia ensejo de lamber as botas ao Presidente
da Câmara. “Bem sabeis. A
gente precisa dele...» – desculpava-se o finório,
que a sabia toda.
Meu tio declinava responsabilidades:
– O boi deles é mais pesado. Vede lá no que vos
ides meter...
– Mas está velho, Marinheiro...
– Isso também é verdade.
– Portanto?
– Seja o que Deus quiser.
A luta foi longa e renhida. Mas
o de Peireses acabou por poder...
Por acaso, estava na feira o famoso
acordeonista Lucindo de Travassos, recentemente chegado de Lisboa.
Meu tio convidou-o para animar a festa do triunfo. Uma noite de
vivas, vinho e bailarico. O Lucindo trazia com ele o Perim aos ferinhos e o
Peladete no bombo. Lembro-me do Peladete,
alta madrugada, perdido de bêbado, sentado numa cadeira, língua de fora, a
zurzir no bombo e a mijar-se pelas pernas abaixo. Uma
noite memorável.
Resta-me acrescentar que o boi a que me refiro era um a que nós
chamávamos o Gralhas, por ser natural da aldeia homónima. Nesses
heróicos tempos, para bois, burros e vinho, não havia como os de Gralhas.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS
II – Crónicas de Barroso (p. 99 e ss.)
Sem comentários:
Enviar um comentário