JORGE MIRANDA
Público - 08/10/2013 - 00:00
1. Uma das questões mais candentes que se
estão suscitando em Portugal e noutros países vem a ser a das pensões de
aposentação, por haver poderes públicos e correntes de opinião que pretendem
diminuí-las ou tributá-las especificamente, em nome da necessidade de propiciar
pensões no futuro aos que agora se encontram ativos.
A
Constituição, como se sabe, incumbe o Estado de, sem prejuízo das instituições
de solidariedade social, organizar, coordenar e subsidiar um sistema de
Segurança Social e de proteger os cidadãos na velhice (art. 63.º, n.ºs 2, 3 e 5) e declara o
direito das pessoas idosas à segurança
económica (art. 72.º, n.º 1) (1) - direito esse
que, segundo o acórdão n.º 576/96 do Tribunal Constitucional, de 16 de abril
(2), tem por núcleo essencial o pagamento de pensões.
Mas, no
acórdão n.º 187/2013, de 5 de abril (3), este tribunal não declarou
inconstitucional o art. 78.º da lei orçamental para 2013 (a Lei n.º 66 B/2012,
de 31 de dezembro) que (conquanto com antecedentes em leis orçamentais
anteriores) criou uma "contribuição extraordinária de solidariedade"
imposta aos pensionistas sobre a totalidade do valor mensal a partir de 1350
euros, segundo escalões sucessivos (n.º 1) e com taxas acumuladas no caso de
pensões superiores a 3.50 euros (n.º 2).
2. Para a tese que fez vencimento, essa contribuição não seria um imposto (por
ser uma receita consignada e sem caráter de completa unilateralidade). Seria,
sim, uma contribuição para a Segurança Social, enquadrável no tertium genus das
"demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas" (4)
do art. 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição. Não eram, portanto, para o
caso mobilizáveis as regras do art. 104.º, nº 1 relativas ao imposto sobre o
rendimento pessoal (n.º 74).
Os
pensionistas afetados pela medida não se encontravam na mesma situação de
quaisquer outros cidadãos, justamente porque beneficiários de pensões de
reforma ou de aposentação e de complementos de reforma, e era a sua distintiva
situação estatutária que determinava a incidência daquela contribuição, como medida conjuntural, com a
finalidade específica de assegurar a sua participação no financiamento do
sistema de segurança social, num contexto extraordinário de exigências de
financiamento que, de outra forma, sobrecarregariam o Orçamento do Estado ou se
transfeririam para as gerações futuras (n.º 75).
Não podia
deixar de se reconhecer que as pessoas na situação de reforma ou aposentação,
tendo chegado ao termo da sua vida ativa e obtido o direito ao pagamento de uma
pensão calculada de acordo com as quotizações que deduziram para o sistema de
Segurança Social, tinham expetativas legítimas na continuidade do quadro
legislativo e na manutenção da posição jurídica de que eram titulares, não lhes
sendo sequer exigível que tivessem feito planos de vida alternativos em relação
a um possível desenvolvimento da atuação dos poderes públicos suscetível de se
repercutir na sua esfera jurídica.
Todavia,
em face do condicionalismo existente, não só as expetativas de estabilidade na
ordem jurídica surgiam mais atenuadas como eram sobretudo atendíveis relevantes
razões de interesse público que justificavam, em ponderação, uma excecional e
transitória descontinuidade do comportamento estadual (n.º 79); e estava
respeitado o princípio da proporcionalidade (n.º 80).
Tão pouco
se verificaria violação de direitos patrimoniais, pois o cálculo do montante da
pensão não teria de corresponder à aplicação de um princípio de
correspetividade que pudesse resultar da capitalização individual das
contribuições; mas radicava, antes, num critério de repartição assente num
princípio de solidariedade, princípio este que apontaria para a
responsabilidade coletiva das pessoas entre si na realização das finalidades do
sistema e se concretizaria, num dos seus vetores, pela transferência de
recursos entre cidadãos (n.º 81). Mesmo quanto aos complementos de reforma, que
funcionam segundo um regime de capitalização, eles estariam associados ao
sistema de Segurança Social na sua integralidade, e estando em causa a
incidência de uma contribuição similar às quotizações dos trabalhadores no
ativo, não se via em que termos é que esses rendimentos deviam encontrar-se
cobertos pelo âmbito de proteção do direito de propriedade, quando ainda se
estaria no domínio da parafiscalidade (n.º 82).
3. Votaram vencidos os juízes Pedro Machete, J. Cunha Barbosa, Catarina
Sarmento e Castro, Maria José Rangel de Mesquita e Fernando Vaz Ventura. Em
comum, os cinco juízes contestaram a natureza atribuída à
"contribuição" e invocaram violação dos princípios de igualdade e de
tutela da confiança. Não é possível aqui resumir essas declarações de voto.
4. Não custa acreditar que, por detrás da decisão de criar a
"contribuição extraordinária de sustentabilidade", estiveram direta e
imediatamente preocupações de índole financeira e apresentadas como
conjunturais. Não deixaram, no entanto, também de estar presentes considerações
sobre a solvabilidade do sistema de segurança social e olhares para o médio e o
longo prazo.
Apesar
disso, afiguram-se-me bem convincentes os argumentos aduzidos pelos juízes que
votaram vencidos, desde logo quanto à natureza de imposto dessa espécie
tributária, muito mais do que o discurso justificativo do acórdão. Até as
razões do interesse público vindas dos órgãos do poder político e que o acórdão
pareceu acolher o confirmavam.
E
impressiona observar que são aqui sujeitos passivos os aposentados, com o peso
da idade e, tantas vezes, de doença, a terem de o suportar, sem deixarem de ter
de pagar o IRS - donde, violação do princípio da unicidade do imposto sobre o
rendimento pessoal do art. 104.º, n.º 1 - e quaisquer outros impostos, como o
IVA. E também de princípio de proporcionalidade. A Segurança Social está
concebida para ajudar, entre outros, os idosos e, afinal, estes ainda têm de
continuar a ajudá-la.
Há, por
outro lado, uma afronta ao princípio da proteção da confiança (5). As pessoas
que trabalharam toda a vida têm as legítimas expetativas de receber agora as
pensões tal como foram definidas na altura própria e para as quais efetuaram os
descontos legalmente estabelecidos nos seus salários. De resto, essas pessoas,
enquanto ativas, também pagaram impostos através dos quais contribuíram para o
sistema e, desde logo, para as pensões das gerações que as precederam (6). E,
em muitos casos, são pessoas que somente agora ou há muitos poucos anos
acederam a um patamar de libertação da extrema necessidade económica, ambiental
e cultural em que antes, elas e os seus ascendentes, viveram. Ou pessoas que,
na solidariedade familiar que, apesar de tudo, subsiste no nosso país, apoiam
os filhos desempregados.
É certo
que alguns pensionistas não contribuíram, nas suas carreiras ou nas funções que
desempenharam, com montantes equivalentes aos que agora pretendem receber. Mas
isso apenas obrigaria o legislador a distinguir, em vez de aplicar cegamente o
mesmo regime a esses e aos demais, com preterição da igualdade e da
proporcionalidade. E pode tratar se por igual quem esteve 45 anos na função
pública (dos quais três de serviço militar obrigatório) até aos 70 anos e quem
se aposentou ao fim de muito menos anos?
A
responsabilidade entre gerações implica a consideração de uma cadeia de
gerações (para empregar uma fórmula do grande constitucionalista alemão Peter
Häberle), presentes, passadas e futuras; e implica um verdadeiro contrato, um
contrato entre elas, avalizado pelo Estado e pelas instituições da sociedade
civil. Fora desta consciência por todos assumida não faz sentido configurar
qualquer tipo de responsabilidade ou apelar à sustentabilidade do sistema.
5. Reproduzindo uma frase paradigmática do próprio Tribunal Constitucional:
"A Constituição não pode certamente ficar alheia à realidade económica e
financeira e em especial à verificação de uma situação que se possa considerar
como sendo de grave dificuldade. Mas ela possui uma específica autonomia
normativa que impede que os objetivos económicos ou financeiros prevaleçam, sem
quaisquer limites, sobre parâmetros como o da igualdade, que a Constituição
defende e deve fazer cumprir" (7).
Resta
esperar que, perante anúncios ameaçadores de mais cortes nas pensões, o
Tribunal Constitucional venha a ser duplamente coerente: com esta afirmação e
com o seu reconhecimento do caráter conjuntural da dita "contribuição extraordinária
de solidariedade.
O que
está em causa não é este ou aquele artigo avulso da Constituição - por mais
importantes que sejam o art. 63.º ou o art. 72.º. O que está em causa é um
complexo de princípios do Estado de direito democrático, comuns ao Direito
Constitucional de todos os Estados da União Europeia e património da
civilização jurídica.
1) A Constituição portuguesa e
outras, como a italiana, de 1947, impondo à República "remover os
obstáculos de ordem económica e social que, limitando, de facto, a liberdade e
a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a
efetiva participação de todos os cidadãos na organização política e social do
país" (art. 3.º) e assegurando aos trabalhadores "o direito, em caso
de velhice, a meios de previdência social adequados às suas
exigências de vida" (art. 38.º). Ou a Constituição espanhola, de 1978,
adstringindo os poderes públicos a garantir, mediante pensões adequadas e
periodicamente atualizadas, a suficiência económica dos cidadãos na terceira
idade (art. 50.º).
Recorde-se também a Carta de
Direitos Fundamentais da União Europeia, em cujo art. 34.º, n.º 1 se lê "A
União reconhece ou respeita o direito de acesso às prestações de Segurança
Social e aos serviços sociais que concedem proteção em casos como a
maternidade, a doença, os acidentes de trabalho, a dependência ou a velhice
(...)".
2) Diário da República,
2.ª série, de 19 de junho de 1996.
3) Ibidem, de 22
de abril de 2013.
4) O acórdão fala em
"serviços públicos", o que não é bem o mesmo.
5) Cfr. Jorge Miranda, Manual
de Direito Constitucional, IV, 5.ª ed., Coimbra, págs. 320 e segs., e
autores citados.
6) Situação bem diferente é a
das pensões de reforma, não contributivas, vindas das Leis n.ºs 26/84, de 31 de
julho (art. 8.º) e 4/85, de 9 de abril (arts. 24.º e segs.), contrárias ao
princípio da igualdade e ao princípio republicano de temporariedade dos cargos
políticos (como escrevi no Manual ..., IV, 1.ª ed., 1988, págs.
60-61). A Lei n.º 52 A/2005, de 10 de outubro, extinguiu-as, mas - em nome da
proteção da confiança - não afetou as daqueles que já as estivessem recebendo.
Só que, em tempo de crise, é de lamentar que nenhum dos beneficiários (algumas
centenas) a elas não tenha até hoje renunciado por um elementar imperativo de
solidariedade nacional.
7) Acórdão n.º 353/2012, de 5
de julho, in Diário da República, 1.ª série, de 20 de julho de
2012.
Professor
catedrático da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa
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