terça-feira, 15 de outubro de 2013

DEPOIS DAS ELEIÇÕES AS ALTERNATIVAS DO PCP

Diário de Notícias, 15 de Outubro de 1980

     O PCP encontra-se na encruzilhada mais difícil da sua vida. É mais grave ter contra si o movimento da História do que a polícia de Salazar. Na verdade, a derrota da APU é a derrota do marxismo tanto teórico como prático.
     Uma das surpresas das últimas eleições foi a baixa de votos, em quase todas as regiões do País, da APU, nome de uma pseudo-aliança do PCP com ele mesmo.
Surpresa inclusivamente para o autor destas linhas, que não esperava esta evolução para tão cedo. Surpresa também para o secretário-geral, que recusou reconhecer a realidade atribuindo o facto a manipulações da propaganda, quando a campanha do PCP foi vasta, inundante, estridente, escandalosa, como nenhuma outra.
     A derrota do PCP não é episódica. Resulta de uma evolução geral, não só em Portugal como em todo o mundo. E, colocada neste contexto, põe problemas de fundo e até problemas teóricos.
Segundo a doutrina, o PC é o partido dos trabalhadores e tende sempre a aumentar em consequência do modo de produção capitalista. O número dos proletários cresce, em resultado do processo de concentração do capital, e é inevitável que os trabalhadores tenham consciência cada vez mais forte da sua crescente miséria provocada pela exploração capitalista. Não é que o PC pretenda chegar ao poder pelos boletins de voto, mas é evidente que o voto secreto também exprime os sentimentos dos trabalhadores que votam. E por outro lado, além do voto, não se vê outra via para conquistar o poder, porque o PCP também foi derrotado quando o poder esteve à mercê das massas desencadeadas na rua pelos golpistas, em 1975. O voto e a insurreição são portanto vias fechadas ao PCP. Que resta então?
     Dir-se-á que os tempos ainda não estão maduros e há que esperar pela inevitável crise geral do capitalismo. Mas para isso era preciso que a teoria estivesse certa, que a história caminhasse no sentido em que diz a teoria marxista. O PC acredita na "marcha da história", em que ele próprio é a vanguarda. Mas é isso justamente o que estas eleições, com o declínio geral dos PCs nas sociedades mercantis mais avançadas, põe em causa. Os factos contradizem a teoria, e a URSS, que se supõe o produto de uma revolução marxista, encontra-se cada vez mais isolada no mundo apesar dos seus aparentes sucessos militares, e sente cada vez maiores dificuldades no campo social, económico e político. Já passou há muito o tempo em que se acreditava no milagre dos planos quinquenais soviéticos. O "milagre" agora é japonês e alemão, duas sociedades mercantis que cresceram desde a última guerra a um ritmo nunca alcançado na Rússia soviética. As "contradições" que Marx apontava nas sociedades "capitalistas" e que as levariam ao seu fim não se desenvolveram como ele esperava, nem é certo que sejam as que ele apontou. Em troca tornam-se cada vez mais patentes as contradições do mundo chamado "socialista", que os meios repressivos não conseguem ocultar.
     A URSS apareceu em certo momento como um foco de irradiação espiritual, a esperança do mundo. Hoje, aos olhos dos trabalhadores, é um país opaco, um ponto escuro do universo, uma ameaça de guerra, uma base de invasões armadas.
     De modo que esperar pelo futuro é esperar por uma quimera. De qualquer modo, a crise geral do capitalismo, tão ansiosamente espreitada e tão terminantemente afirmada pelos marxistas, não se deu. Isto não quer dizer que o sistema mercantil haja de durar sempre. Mas nós não sabemos como nem quando acabará. O que podemos desde já anunciar é que não acabará da maneira que o previu a doutrina de Marx, porque nem a lei da pauperização universal nem a da exploração intensificada dos trabalhadores manuais, nem a da solidariedade internacional dos trabalhadores foram confirmadas pelos factos.
     Não admira, pois, que a Internacional dos PCs tenha perdido o seu poder de atracção sobre as massas, principalmente nos países onde a classe operária é mais numerosa e onde o capitalismo está mais desenvolvido (e por isso, segundo a teoria marxista, mais perto do seu fim). Até mesmo a Internacional dos PCs se está desintegrando e certos partidos dela, como o italiano e o espanhol, prudentemente, tiraram o cavalo da chuva (permita-se-nos a expressão) e dessolidarizaram-se da URSS e do leninismo, inventando o "eurocomunismo" (que é provavelmente um mito mais). E o próprio PC português evita exibir o seu símbolo tradicional (a foice e o martelo), como se fosse preciso esconder a face. O movimento geral do PC é de refluxo. E como poderia ser de outra maneira se a teoria não corresponde (nunca correspondeu) à realidade, embora se declare a si própria "científica"? O PC não está na corrente da História, mas contra a corrente da História. O marxismo é uma escolástica, que só está certa se ignorarmos a realidade que nos cerca.
     Por isso as suas votações diminuem de ano para ano, e a juventude se afasta cada vez mais dela. E custa-nos hoje a perceber como alguma vez se pode crer que o socialismo marxista era a ''juventude do mundo", os "amanhãs que cantam". A esperança da URSS e dos que a acompanham reside hoje não no internacionalismo operário, não na juventude, não nas massas "exploradas" de todo o mundo, mas na ocupação militar de certos pontos estratégicos em vista de uma guerra puramente militar. Mas a própria URSS está cada vez mais cercada pelas massas dos seus próprios satélites e do seu interior. O tempo está contra ela, e os riscos de guerra vêm justamente daí: provocando uma guerra, a URSS e os governos seus dependentes podem esperar deter por algum tempo o processo de desintegração interna que se está acelerando.
     Ora contra isto, contra este processo objectivo, contra o erro teórico em que se fundamenta, o PCP nada pode. O seu problema é pois o de, aceitando estas condições imprevistas para a teoria, rever não só a sua táctica e a sua estratégia, mas os próprios objectivos a alcançar. Parece-nos que as alternativas que se lhe oferecem são as seguintes:
     Primeira: fechar os olhos e prosseguir a marcha no mesmo sentido, considerando todos os sinais em contrário (incluindo estas considerações) como manifestações de "anticomunismo primário". Nesse caso o PCP tornar-se-ia rapidamente uma seita de visionários sem qualquer "controlo" sobre a realidade política (como por exemplo as Testemunhas de Jeová ou qualquer outra).
     Segunda: converter-se num partido como os outros (isto é, não-leninista), actuando de acordo com as condições locais e visando o Poder nas condições de qualquer outro, incluindo a aceitação do princípio da alternância. Mas nesse caso o PCP tornar-se-ia uma espécie de UEDS, um partido socialista mais radical, sem grande esperança de alguma vez chegar ao Poder ou de ter nele influência.
     Terceira: transformar-se numa fortaleza fechada ao serviço da estratégia militar russa esperando que a guerra lhe dê oportunidade de lançar mão ao Poder. Neste caso o PCP perderia quase toda a sua clientela e a guerra pode nunca chegar, apesar dos esforços preparatórios do Movimento para a Paz e a Cooperação.
     Quarta: converter-se num partido laboral, apoiando as reivindicações dos trabalhadores dentro do sistema, um pequeno nó animador dos sindicatos, uma espécie de "Labour" inglês, que foi inicialmente um movimento de apoio às associações operárias, mas que finalmente, com o nome de Partido Trabalhista, chegou a ser governo dentro de uma sociedade liberal e democrática. Mas esta hipótese obrigaria a pôr na prateleira, como ornamento decorativo, a teoria marxista e a tentar elaborar uma outra, menos conflituosa com a realidade, por um método de aproximação empírica.
     A Quarta e última alternativa é a menos louca de todas, mas exige uma grande dose de bom senso de modéstia e de isenção para ser seguida. Dada a mania das grandezas que o PCP tem manifestado em diversas oportunidades, a desmesura "heróica" e o profetismo de alguns dos seus chefes, parece-nos pouco provável que este caminho venha a ser seguido nas próximas reuniões do Comité Central em que o futuro do partido será decidido.
     O PCP encontra-se na encruzilhada mais difícil da sua vida. É mais grave ter contra si o movimento da História do que a polícia de Salazar. Na verdade, a derrota da APU é a derrota do marxismo tanto teórico como prático.
António José Saraiva

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