Manuel António Pina
Em vésperas do fim do século, aí está ele,
insidioso e perverso, o pesadelo orwelliano sob a forma do triunfo dos porcos. Na sua História da Revolução Francesa, Carlyle observa, quero crer que com algum desapontamento, como das revoluções – sonhadas
por «utópicos» e realizadas por «fanáticos» – quem acaba sempre por tirar proveito
são os desavergonhados de todas as espécies. Hoje já não há lugar para as
revoluções, e muito menos para as utopias; é tempo, sim, de tirar proveito, e
depressa. A mediocridade e a vulgaridade ganharam em todas as frentes. E os
sonhos, ainda há poucas décadas da desmesurada medida da liberdade, da justiça,
ou da paz, parecem hoje reduzidos – até entre os jovens, de cuja imatura
matéria sempre foram feitos os grandes sonhos das sociedades – ao tamanho mesquinho
do BMW, do cartão de crédito e da carta de curso.
A assustadora estirpe dos homens práticos e dos
técnicos instalou-se, um pouco por toda a parte, nos mais secretos lugares do coração
das nossas sociedades, vampirizando a sua identidade e as suas forças e sujando
o seu sangue mais profundo. Os poetas foram expulsos da cidade e resistem – os
que resistem e ainda não se converteram também ao espectáculo industrial em que
a arte e a cultura se transformaram – em obscuras catacumbas interiores, celebrando
clandestinamente aos deuses caídos da esperança e da gratuitidade.
Que futuro pode ter uma sociedade sem esperança
e sem poesia? Uma sociedade em que a esperança se reduziu progressivamente à
mera sobrevivência individual e cujos valores se personificam em modelos como Silvester Stallone ou Madonna? Vejo a sanha com que os nossos líderes políticos e os «pivots» dos
telejornais espezinham furiosamente os restos da tragédia em que descambou a
utopia comunista e pergunto-me se, neles, nesses terríveis destroços, eles
odeiam os crimes do socialismo real (o maior dos quais terá sido,
provavelmente, o da traição à utopia igualitária) ou se não é, antes, a própria
ideia de utopia e de esperança que, incapazes de compreender, eles sobretudo
odeiam e perseguem. Ouço-os grunhir vitoriosamente que «o comunismo acabou» e
fico certo de que é o humano, demasiadamente humano, ideal comunista – insusceptível,
como o ideal cristão, e todos os outros grandes ideais, de ser reduzido aos
seus números e às suas torpes estatísticas – que eles profundamente temem.
E que nos oferecem eles em troca? Comércio.
Como se os homens pudessem viver, viver e não tão-só sobreviver, de
comércio, e como se as sociedades pudessem, desde sempre, prescindir dos grandes
sonhos irrealizáveis e dos grandes mitos de que os poetas, e os artistas, e os
filósofos, são a alma e o corpo. Como disse o poeta, eles não sabem (nem
sonham) que é o sonho, e não as cotações da bolsa, que comanda a vida, e que
pelo sonho é que vamos. E como não sabem, nem podem saber, roubaram-nos o
melhor que tínhamos, os sonhos, os ideais, os valores (até, tantas vezes, os meros
e pouco rentáveis escrúpulos), deixando-nos absolutamente sós fora de nós
mesmos, como mutantes desamparados e assustados errando na imensa selva do mais
forte e do mais velhaco.
Em Portugal, a metástase cavaquista do fenómeno
contamina hoje até os que, pessoas e partidos, aparentemente deviam estar do outro
lado. O «fim das ideologias» e o «fim da História» são saudados euforicamente
por quase todos e os raros que persistem em alguma forma de fidelidade ou de fé
são olhados despeitadamente de viés como sobreviventes dinossáuricos. E, no
entanto...
Outro dia estive a observar na TV o desastrado
combate que um tal José Eduardo Moniz tentava travar contra Cunhal, como se, falando línguas tão díspares, ambos se pudessem de qualquer modo
entender, ou sequer desentender. Numa sociedade como aquela em que se tornou a
sociedade portuguesa dos últimos anos, inteiramente órfã de ideias e de
valores, bons ou maus, Cunhal parece ter-se tornado, de facto, numa espécie de
paradigma, e contra ele e contra a sua «quixotesca» fé (pois que o homem teima,
apesar de tudo, em continuar a acreditar em algo) se lançam todos os Sanchos Panças triunfantes da nossa praça pública. É a
coragem que os move ou antes o confuso e irracional medo de alguma coisa, imensa
e incorruptível, onde as suas mesquinhas contabilidades não podem, pobres
delas, absolutamente alcançar?
JN, 07/10/1992
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