19/10/2013 - 00:00
LUIZ DAROCHA
Hoje faz um ano que morreu Manuel António Pina. O Clube dos
Amigos Que Continuam à Espera do Pina vai esperar pelo dia em que faria 70 anos
para comemorar com o lançamento de um livro
Pediram-lhe um texto biográfico sobre o seu amigo Manuel António
Pina. Disse que não. "Sou escritor, gosto é de inventar", pensou
Álvaro Magalhães. E inventou. "Achei que escrevendo ficções era capaz de
me aproximar mais da essência dele do que numa mera biografia. Mas não tinha
sequer pensado em fazer um livro. Tudo partiu daquele pedido", contou.
Foi assim a génese de O
Senhor Pina, ilustrado por Luiz Darocha, outro amigo, e editado pela
Assírio & Alvim. Um livro em que o protagonista sai em passeio "à
procura de poesia fora dos poemas" e leva com ele o seu herói, o ursinho
Puff (mais conhecido como Winnie the Pooh). Nele se fica a conhecer a
intimidade do "homem que ria", que mudou a literatura infantil, que
"brincava com as palavras" e que "chegava sempre atrasado".
Quando chegava.
O livro será lançado no Porto, na Biblioteca Almeida Garrett,
quando for apresentado o Clube dos Amigos Que Continuam à Espera do Pina,
"que se compromete a todos os anos, no dia do seu aniversário, 18 de
Novembro, organizar uma sessão que seja educativa sobre a obra dele ou
relacionada com ele". Também se irá divulgar um vídeo inédito, "com o
Pina à conversa com Agostinho da Silva sobre o que é ser criança".
O clube é constituído pelos amigos mais próximos, que se
encontravam duas ou três vezes por semana no Café Convívio, no Porto.
"Jogávamos bilhar, brincávamos, contávamos anedotas", descreve Álvaro
Magalhães. "Vamos fazer todos os anos alguma coisa como forma de mitigar
esta falta."
Numa pré-sessão de lançamento em Santo Tirso, na edição de 2013
de A Poesia Está na Rua, dedicada a Manuel António Pina, o autor fez por
mostrar que, "no livro, está tudo misturado, como se realidade e
imaginação fossem uma coisa só". Por isso, explica: "A história real
que lhe aconteceu era diferente daquela, mas tinha a essência daquela. Todo o
livro é um bocado assim."
A realidade: "As idiossincrasias dele. Chegava atrasado a
todo o lado, marcava quatro entrevistas ao mesmo tempo e não ia a nenhuma,
aquilo é tudo verdade. O monte de coisas que tinha para fazer em cima da mesa e
que não fazia porque acabavam por se resolver."
"Todas estas coisas estão por fazer, e eu
não faço nada por elas", continuou o senhor Pina. "Desde que chegaram
ainda não lhes mexi. Achas que deixando-as assim, por conta delas, se resolvem
por si?"
"Ó sim, podes estar
descansado", garantiu o Puff. "Quando não se faz nada, nada fica por
fazer." (pág. 58)
As idiossincrasias, o autor explorou-as na relação com o Puff.
"Ele tinha uma concepção tauista da vida, que também é visível na poesia.
Era preciso relativizar tudo, as coisas não tinham assim tanta
importância."
Por isso, a abrir o livro, escolheu uma frase de Pina que traduz
bem essa atitude: "As coisas sérias que cómicas que são."
Dizia-lhe: "Estás a ver isto aqui? É tudo urgente e
importante. Um prefácio para ali, um texto para acolá, uma conferência não sei
para onde, um livro. Se a gente não fizer nada, há-de passar. Deixa de ser
importante."
O lado risonho: "A disponibilidade permanente para brincar,
para o riso. Porque a literatura, sobretudo a escrever para os mais novos, é
brincar."
O autor, que pensa a literatura como "a infância finalmente
recuperada", recorda como na literatura infantil de Pina "tudo era
jogo, brincadeira". E o próprio dizia: "Gosto das palavras e brinco
com elas." Mas não lhe falassem em livros "para" crianças.
"Estou a escrever um livro
para a Sara e para a Ana. O Inventão."
"Ah e é um livro para crianças,
então?"
"Quando for lido por uma
criança, é um livro para crianças. Quando for lido por um adulto, é um livro
para adultos. Os livros não são "para", os livros são." (pág.
67)
O papel de Manuel António Pina na entrada de Álvaro Magalhães e
de outros autores portugueses na literatura infantil foi fundamental. "Ele
publicou o primeiro livro infantil em 1973, O
País das Pessoas de Pernas para o Ar. Veja lá o que era a literatura
infantil portuguesa antes da revolução... Os livros dele não tinham qualquer
relação com o que existia até aí." E fez-se luz.
"Trouxeram-nos a modernidade e abriram um clarão luminoso.
Nós olhámos e pensámos: "Afinal, sempre há vida em Marte"!",
enfatiza, com uma gargalhada. Realça as referências à literatura inglesa,
"que era chamada "infantil", mas que não é infantil, pode ser
lida por crianças, mas estas não são o seu leitor natural nem o destinatário
dos livros, é para toda a gente".
Diz que a primeira lição que os livros do Pina nos dão "é
que não há literatura infantil, há literatura". Mas acrescenta: "É
claro que, se olharmos para o nosso panorama, sabemos que há literatura
infantil, mas um género menor. São os livros exclusivamente oferecidos aos mais
novos e que só eles podem ler. Nenhum adulto consegue ler aquilo sem olhar para
o lado. Depois existem estes livros raros, estas obras, que nos dizem
exactamente o contrário. Que o que há é literatura."
Para Álvaro Magalhães, "a literatura infantil do Pina e a
poesia eram a mesma coisa, tinham a mesma natureza, o poético, mas apenas
encontravam modos de expressão diferentes". Fala nele como "um poeta
da palavra, um escritor da palavra". Não são todos? "Não. Há muitos
poetas que fazem poesia apesar das palavras. Outros que até fazem contra as
palavras, não interessa. Desde que se consiga atingir o poético. Mas tudo o que
o Pina fazia nascia da própria materialidade das palavras, da própria
linguagem. Os poemas são feitos dessa própriapoiesis,
são feitos do seu próprio fazer. Há livros do Pina, como o Inventão, que fundam o próprio lugar do
poético. Como se a poesia se escrevesse mesmo quando não estão a escrevê-la. É
esta a filosofia que preside à abordagem que eu faço da poesia do Pina fora dos
poemas."
"Anda a pensar em ideias para os seus
poemas?"
"Que ideia!",
respondeu o senhor Pina. "Os poemas não se fazem com ideias, mas com
palavras. Hoje ando à procura da poesia fora dos poemas, de mais duração, de
mais beleza. Acho que é isso que ando a fazer, mas não tenho a certeza." (pág.
41)
Segundo Álvaro Magalhães, muitos autores escrevem para os mais
novos por causa de Manuel António Pina. "Não sabíamos que era possível
fazer aquilo. E no meu caso é mais marcante porque eu tinha a proximidade dele.
Logo nos meus primeiros textos infantis, escrevi o livro Isto É Que Foi Ser, em que o Pina era
personagem. Estávamos em 1984. Portanto, esta não foi a primeira vez que o
utilizei como personagem."
Trabalho que foi uma mistura "de homenagem, declaração,
adesão e afecto, mas também exorcismo". "Era também eu a tentar
libertar-me e construir o meu próprio caminho", explica.
Primeiro editor dos poemas de Pina, na editora Gota d"Água,
como A Lâmpada do Quarto? A Criança?e Nenhum Sítio, criaram uma cumplicidade que
iria dar lugar a outras parcerias.
Nos anos 1990, a necessidade de ganhar dinheiro levou-os a
escrever em conjunto centenas de guiões para televisão. "Séries de
televisão, sitcoms. Fizemos a
primeira série dos Advogados, com
diálogos em tribunais. Era para ganhar a vida. Como ele dizia, "há coisas
que se fazem para ganhar a vida e outras para salvar a vida"."
Ele não gostava muito de falar nisso, "envergonhava-o um
bocadinho, mas também não negava". Assinava os guiões com outro nome:
Aguiar Mota. Normalmente, era o Álvaro que fazia os argumentos, dava-lhe o
episódio todo montado com as cenas e ele trabalhava mais a linguagem.
"Juntávamos as nossas capacidades. Era pacífico. Aliviávamos ambos a
colaboração do outro."
Mas assim que deixaram de precisar daquele dinheiro, desistiram.
"Era uma vida miserável, cansativa. Havia conflitos, não entre nós, mas
com o realizador. Era mesmo um dinheiro duro de ganhar. Mas ganhámos imenso
dinheiro."
Durante muitos anos, Manuel António Pina recebeu uma reforma da
Sociedade Portuguesa de Autores que resultou justamente desses guiões. E Álvaro
dizia-lhe: "Estás a ver, se eu não te obrigasse a trabalhar..."
Porque até na gestão das suas edições e dos direitos sobre elas, Pina se
distraía.
Amigo de ambos, Luiz Darocha foi chamado a ilustrar O Senhor Pina. "Tinha de ser um
ilustrador do nosso círculo afectivo e o Luiz Darocha também era nosso amigo, e
eu sabia que ele era capaz de chegar àquela estética. Eu queria ver o Pina ali.
Não podia ser uma coisa estilizada. Acho que ele conseguiu isso e deu-lhe uma
dimensão onírica".
Luiz Darocha, que reside em Paris, conta, por email, como foi ilustrar Álvaro e Pina:
"Foi uma aventura delicada e cheia de peripécias. Fiz tudo o que podia
fazer de melhor e globalmente estou satisfeito com o resultado. Emocionalmente,
foi por vezes muito difícil."
Algumas escolhas foram feitas em conjunto com o autor.
"Acabaram por ser seleccionadas 58 ilustrações e excluídas
dezenas. Os Gigões e os Ananteslevaram-me a fazer vários desenhos com muito
regozijo, pois que aparecia aí um expoente comum do imaginário do Pina, Álvaro
e eu. O desenho da capa foi ideia do Álvaro, e também passou por várias
tentativas e entusiasmos. A ilustração final foi um caso. Muitas tentativas de
configuração e uma grande dificuldade emotiva; nós na garganta. Gatos,
encontros com o Puff, bigodes voadores, todas essas referências amáveis me
faziam esquecer que estava a fazer arte, ou ilustração, ou estilo; o resultado
aparece-me, pois, como um convívio (aliás, o Convívio é o restaurante bem
nomeado de muitos encontros), que espero que o leitor possa partilhar",
descreve.
O ilustrador conheceu Manuel António Pina nos anos 1960.
"Nos gloriosos anos 65, 66, eu e o Pina andávamos de namoro com duas
meninas amigas." E mais tarde, "após exílio e expatriação", Luiz
Darocha regressou, em 1977, ao Porto e contactou o amigo. "Daí para
diante, cada vez que ia ao Porto lá nos encontrávamos para conversa e usufruto
da amizade. Graças ao Pina, conheci o Álvaro e assim, à medida que os anos
passavam, uma amizade sincera consolidava-se."
Álvaro Magalhães comemora este ano 30 anos de vida literária e a
Biblioteca Almeida Garrett e as Edições Asa organizaram um programa que irá
decorrer entre 21 e 26 de Outubro, com encontros com o escritor, conferências,
exposição biobibliográfica, sessões de poesia, etc.
Entretanto, continua à espera: "Costumamos dizer que os
grandes escritores quando morrem continuam vivos através da obra. Mas eu e os
amigos mais próximos queríamos era o Pina ele mesmo. Ele é que nos faz falta,
ele mesmo. Às vezes, penso que ainda vai chegar. Está só atrasado."
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