Ler um livro sobre o que
hoje se sabe do cérebro humano é uma experiência terrível. Porque está lá tudo
e as mínimas actividades ou modo de se ser têm já uma localização em sítios
mínimos de se produzirem. E a nossa sensação é a de desventrar um boneco da
infância ou destruir o enigma de um prestidigitador. Mas finda a leitura,
regressamos a nós, à nossa interioridade, e logo desaparece a fisiologia da sua
explicação. É curioso como os especialistas do mecanismo cerebral voltam a
falar em «máquina» como certo pensar o pensou. A filosofia ridicularizou este
explicar mecânico, mas agora a nossa reacção não tem o riso entremeado à
explicação mas um certo estarrecimento. Nós sabíamos que não há um «espírito»
separado do corpo. Mas repugna-nos ainda a teoria de que ele é «segregado» por
ele, ou seja pelo cérebro. Porque mesmo o perfume de uma flor está na flor, mas
existe por si como perfume. Como a própria flor veio do estrume que a fez ser,
mas a beleza dela não tem estrume nenhum. Como uma cor é o efeito de certos
arranjos físicos e corpóreos, mas ela é aí a beleza de si ou de uma obra de
arte. Aliás, há casos de daltónicos que só já adultos souberam que o eram,
porque distinguiam na sua percepção as várias cores, mas não sabiam que a nossa
percepção era diferente. Seriam sensíveis à beleza dessas cores no modo como as
distinguiam? A interiorização seja do que for em percepções ou sentimentos
instaura isso numa vida que é sua e independente de não sê-lo. O espírito sou
eu e não há possibilidade de eu perceber que esse eu me não pertença ou que eu
o não seja. E em face disso, toda a materialização cerebral em dados
fisiológicos é tão vã como a de me explicarem – e eu o saber – que a pessoa que
sou me veio nos 23 cromossomas do meu pai e minha mãe. Porque neste momento em
que me penso não há pais a identificarem-me o que eu sou diante de mim. Quando
leio o que me ensinam sobre o cérebro, eu estou de lado a assistir. Mas depois
o que fica de lado é o livro e o seu saber. E eu continuo. De todo o modo mais
esclarecido e também com alguma mossa. Mas logo as esqueço como ao estrume na
flor.
*
Ontem à noite voltou a
cair uma enorme carga de água até ao limite de um possível dilúvio. Mas hoje o
sol teimou na sua e lá conseguiu abrir um espaço para brilhar. Mas uns restos
de nuvens ainda o provocaram e havia assim que haver cedências de parte a
parte. E o resultado foi um efeito de lágrimas e riso com uma chuva esparsa e
luminosa. Riso e choro. Era belo e triste como a ternura.
conta-corrente | nova série | II [1990]
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