quarta-feira, 16 de outubro de 2013

PARA QUÊ? PARA QUÊ?

       Quando eu era criança (porque todos fomos crianças uma vez, mesmo aqueles que nos custa a acreditar que o tenham sido) costumava ficar longas horas a jogar um perigosíssimo jogo infantil. Escolhia uma palavra familiar e quotidiana (casa, mãe, céu) e repetia-a em voz alta, infinitamente, até ela deixar de fazer sentido e me soar absurdamente nos ouvidos como uma vaga sucessão de sons, uma música desconexa que eu ouvisse então absolutamente pela primeira vez.
       Assim as amava, às palavras, na sua pobreza e na sua fragilidade, libertas das cadeias que as prendem ao mundo e às coisas. Os substantivos eram corpos vazios, ténues ressonâncias despojadas de todo o peso e de todo o poder, e os adjectivos e os verbos belíssimos seres translúcidos vogando fugazmente à minha volta. E eu descobria, alvoroçado, que era senhor de um poder imenso: o poder de libertar as palavras e de partilhar da sua vida e da sua morte; e que poderia tocar, se quisesse, a sua natureza mais íntima e mais imaterial.
       Hoje ainda me acontece olhar as minhas palavras, embora (pobre de mim) tenha perdido para sempre a capacidade de, como num espelho, me surpreender a mim próprio nelas. Há muitos anos possuía palavras imensas: cão, casa, mãe, céu, aves. Hoje só tenho sentidos e sentimentos, palavras não. Aprendemos coisas de mais, eu e as minhas palavras, e perdemos, nos labirintos dos livros e do comércio com a vida, toda a sabedoria.
       É com uma sombria impressão de pecado e de infâmia que, às vezes, destino ainda indistintas horas às palavras medíocres que me restam e às coisas medíocres de que elas são feitas e imperfeitas. Não é verdade que escrevi medíocres palavras, falei de coisas pequenas, de ambições pequenas, de pequenos e torpes personagens? Não é verdade que, se calhar, envolvi nisso algum do meu coração e pior: que talvez algum do meu coração se tenha deixado envolver nisso (estará também ele contaminado pela usura, o meu coração?) e não é verdade que, muitas vezes, me inconformei e me impacientei?
       Meto a folha de papel (que em breve estará cheia de palavras) na máquina de escrever e hesito. Houve um tempo em que as palavras me abriam os vastos caminhos do silêncio. Hoje tornaram-se instrumentos ruidosos, infelizes seres úteis que a usura corrompeu. Olho-as com comiseração e com ternura, como provavelmente também elas, as palavras, me olham a mim de dentro dos seus imensos olhos cegos, e começo então a bater, uma após outra, as teclas, disposto a ser digno da minha solidão e da solidão das minhas palavras.
E ocorre-me vagamente um poema de Carl Sandburg. A mula que diz-se incendiou Chicago com uma patada num candeeiro de petróleo olha de longe, de dentro do poema e do poeta, a cidade em chamas e repete as mesmas palavras que, contemplando as ruas fervilhantes de gente operosa, de dramas e de humilhações, tantas vezes antes o seu silêncio pronunciara: para que? para quê?
Assim começo resignadamente cada crónica: para que?
Manuel António Pina  JN,16/10/1991

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