Quando eu era criança (porque
todos fomos crianças uma vez, mesmo aqueles que nos custa a acreditar que o
tenham sido) costumava ficar longas horas a jogar um perigosíssimo jogo
infantil. Escolhia uma palavra familiar e quotidiana (casa, mãe, céu) e repetia-a
em voz alta, infinitamente, até ela deixar de fazer sentido e me soar absurdamente
nos ouvidos como uma vaga sucessão de sons, uma música desconexa que eu ouvisse
então absolutamente pela primeira vez.
Assim as amava, às palavras,
na sua pobreza e na sua fragilidade, libertas das cadeias que as prendem ao
mundo e às coisas. Os substantivos eram corpos vazios, ténues ressonâncias
despojadas de todo o peso e de todo o poder, e os adjectivos e os verbos
belíssimos seres translúcidos vogando fugazmente à minha volta. E eu descobria,
alvoroçado, que era senhor de um poder imenso: o poder de libertar as palavras
e de partilhar da sua vida e da sua morte; e que poderia tocar, se quisesse, a
sua natureza mais íntima e mais imaterial.
Hoje ainda me acontece olhar
as minhas palavras, embora (pobre de mim) tenha perdido para sempre a
capacidade de, como num espelho, me surpreender a mim próprio nelas. Há muitos anos
possuía palavras imensas: cão, casa, mãe, céu, aves. Hoje só tenho sentidos e
sentimentos, palavras não. Aprendemos coisas de mais, eu e as minhas palavras, e
perdemos, nos labirintos dos livros e do comércio com a vida, toda a sabedoria.
É com uma sombria impressão de
pecado e de infâmia que, às vezes, destino ainda indistintas horas às palavras
medíocres que me restam e às coisas medíocres de que elas são feitas e
imperfeitas. Não é verdade que escrevi medíocres palavras, falei de coisas
pequenas, de ambições pequenas, de pequenos e torpes personagens? Não é verdade
que, se calhar, envolvi nisso algum do meu coração — e pior: que talvez algum do meu coração se tenha deixado envolver nisso
(estará também ele contaminado pela usura, o meu coração?) — e não é verdade que, muitas vezes, me inconformei e me impacientei?
Meto a folha de papel (que em
breve estará cheia de palavras) na máquina de escrever e hesito. Houve um tempo
em que as palavras me abriam os vastos caminhos do silêncio. Hoje tornaram-se
instrumentos ruidosos, infelizes seres úteis que a usura corrompeu. Olho-as com
comiseração e com ternura, como provavelmente também elas, as palavras, me
olham a mim de dentro dos seus imensos olhos cegos, e começo então a bater, uma
após outra, as teclas, disposto a ser digno da minha solidão e da solidão das
minhas palavras.
E ocorre-me vagamente um poema
de Carl
Sandburg. A mula que — diz-se — incendiou Chicago
com uma patada num candeeiro de petróleo olha de longe, de dentro do poema e do
poeta, a cidade em chamas e repete as mesmas palavras que, contemplando as ruas
fervilhantes de gente operosa, de dramas e de humilhações, tantas vezes antes o
seu silêncio pronunciara: para que? para quê?
Assim começo resignadamente cada
crónica: para que?
Manuel António Pina — JN,16/10/1991
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