Eduardo Prado Coelho, segunda-feira, 9
de Outubro de 2006
Há duas
modalidades daquilo a que chamamos "culpa". Por um lado, temos aquela
a que podemos dar o nome de "subjectiva". É a culpa – terrível – do
que sabemos que fizemos, que gostaríamos hoje de não ter feito, e de que não
nos libertaremos nunca por inteiro. Mesmo quando a esquecemos quase por
completo, há uma dorzinha que permanece e fica dentro de nós como uma agulha.
Em segundo
lugar, temos a culpa de que os outros falam e se tornou uma realidade social. É
a culpa pública em que os outros nos apontam a dedo. É claro que o peso dela se
repercute na dor subjectiva: sabemos que os outros sabem. E isso cria a
vergonha. Há coisas que fazemos, mais ou menos ilícitas, porque ninguém está a
ver. E há situações em que nos sentimos culpados por motivos que são os de uma
certa vulnerabilidade que expomos. Quando eu estava na embaixada em Paris, por
vezes substituía a impossível e desejada sesta por ir passar pelas brasas
dentro do carro. Punha um livro nos joelhos como quem interrompera um momento
de leitura. Mas quando alguém batia, sorridente, no vidro da janela, eu sentia
de certo modo que tinha sido apanhado em falta: era uma culpa absurda que se
infiltrava.
Tudo isto veio
a propósito de um caso que é paradigmático. Tínhamos na Antena 1, todas as
manhãs, o enorme prazer de ouvir Sena
Santos. Pouco a pouco, apenas a sua voz já era um reconfortante lugar de
encontro. Depois houve uma enorme trapalhada que não serei eu quem vai
deslindar. Sei apenas que Sena Santos tinha cometido actos de inegável
gravidade em que havia abusado da boa fé dos outros. Nuns casos, havia apenas
as palavras enganadoras. Mas noutros havia verdadeira extorsão de dinheiro.
Porquê? Para quê? Sinceramente, não sei. Acho mesmo que ninguém sabe ao certo.
De alguma maneira, Sena Santos, o profissional irrepreensível, o amigo de todas
as manhãs do mundo (para falarmos à maneira do escritor Pascal
Quignard), tornara-se para todos nós um enigma.
Passaram já
alguns anos. Sena Santos desapareceu de circulação e a verdade é que muitos já
nem se lembram dele. Aparece, em pequeníssimas letras, num trabalho de
transcrição para um jornal acolhedor, e mais nada. Ora se a nossa culpa pode
ser inextinguível, a culpa objectiva, social (a não ser que se tenha morto o
pai e a mãe, ou a mulher e os filhos) tende a desvanecer-se. É isso que deveria
estar a acontecer com Sena Santos. Não o tenho visto, não sei nada dele. Mas
sinto a sua falta, o que é de certo modo uma forma de presença. Creio que é
altura de termos de novo Sena Santos no programa da manhã de uma qualquer rádio
– eu lá estarei a ouvir. Ninguém era capaz de falar com tanta facilidade e
desenvoltura de cinema ou ópera, de futebol ou política, de questões locais ou
dos grandes problemas internacionais. E não conheço ninguém capaz de suscitar
ao microfone aquela espécie de ritmo contagiante que era a grande marca
radiofónica de Sena Santos. Espero ouvi-lo muito em breve – porque o jornalismo
radiofónico precisa de gente assim.
Professor Universitário
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