sábado, 9 de julho de 2011

VAI-TE DIABO!

Um dia destes fui convidado a deslocar-me à Feira do Livro de Santiago de Compostela.
Saí um pouco mais cedo, no bom intento de ir dar uma vista de olhos à Catedral, aos edifícios que a rodeiam, às ruas que para ela convergem.
Em arquitectura, gosto das coisas antigas. Do românico. Da pedra lavrada. Da pátina dos séculos.
E enquanto calcorreava aquelas meditativas ruas medievais, pavimentadas de sonoras lájeas de granito velho, ia avocando à memória tudo o que, ao longo dos anos, fui lendo e ouvindo a respeito do Apóstolo Santiago.
Era irmão de S. João Evangelista e ambos filhos do pescador Zebedeo e sua mulher Salomé.
Segundo S. Lucas, houve, entre os doze Apóstolos, um Tiago Maior e outro Menor.
É daquele que estou a falar.
Após a morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, Santiago, o Maior, teria vindo pregar o Evangelho aos pagãos da Península Ibérica.
Daqui teria regressado a Jerusalém, onde sofreu o martírio no ano 44 da nossa era.
Os discípulos tê-lo-iam trazido de volta a Espanha e dado sepultura em Finisterra.
Uns oitocentos anos depois, os camponeses começaram a ver luzes sobre um antigo castro dos arredores da cidade episcopal de Iria Flávia, actual Padrón.
Avisaram o bispo, um tal Teodorico.
Este saiu a terreiro e observou, com os próprios olhos, as luzes ou estrelas, sobre o campo. Campus Stellae-Compostela.
As estrelas que, outrora, conduziram os Reis Magos ao Presépio do Menino Jesus, acabado de nascer, conduziam agora o bispo de Iria Flávia ao túmulo do Apóstolo, sepulto há oito séculos.
Teodorico avisou o rei das Astúrias, Afonso II, o Casto.
Este acorreu prestes, viu a tumba e apressou-se a construir uma igreja que, dignamente, a acolhesse.
A notícia da milagrosa descoberta dos restos mortais dum dos doze Apóstolos, breve se espalhou por toda a cristandade. E os fiéis, impossibilitados de visitar os lugares santos da Palestina, então em poder dos muçulmanos, principiaram a acorrer em turbilhão à Galiza.
O «Codex Calixtinus», ou «Guia do Peregrino Medieval» datado do século XII e atribuído ao papa Calixto II, fala em 400 a 500 mil por ano. Vinham nobres e plebeus, velhos e novos, ricos e pobres, sãos e aleijados. A primeira vez que fui a Santiago, aqui há um bom par de anos, fiquei comovido quando me indicaram, numa das tais ruas antigas, uma vetusta fonte de mergulho chamada a «Fonte da Rainha», por nela ter lavado os régios pés, chagados da jornada, a nossa rainha Santa Isabel.
Ainda me lembro de, na minha infância, ver alguns desses peregrinos de Santiago, com a sua túnica de sete varas cravejada de vieiras e cingida por uma corda, grosso bordão ou báculo com a cabacinha ao alto, largo sombreiro na cabeça ou pendente para as costas dum barbante passado por debaixo do queixo, um rosário ao pescoço outro à cinta, ar seráfico.
Esses santos romeiros, muitos deles de pau carunchoso, encontravam sempre portas e corações abertos, mesa farta e cama lavada.
Depois esses «pelingrinos» como o povo lhes chamava, desapareceram de todo. Ou a fé se extinguiu, ou o ofício deixou de render.
Em tudo isto eu meditava, quando comecei a ouvir uma alegre melodia de gaita de foles. «Temos festa!», disse para comigo. E estuguei o passo em direcção à vasta e harmoniosa «Praça do Obradoiro».
Afinal, todo aquele ar de festa era dado por um pedinte de cornamusa ao tiracolo e chapéu aos pés. Estive para pedir a um polícia que por ali rondava que tirasse o gaiteiro dali. Lembrando-me, porém, que todos temos direito à vida, desisti da ideia.
Estava um dia frigidíssimo. Não obstante, os turistas, substitutos actuais dos antigos peregrinos, enxameavam a vasta praça e o monumental escadório. Meti-me na bicha dos que, em frente da coluna principal do «Pórtico da Glória», aguardavam vez de pôr a mão, formular um desejo e bater com a testa na cabeça do Apóstolo.
E enquanto assim estava, reparei que alguns devotos, além de pôr a mão e bater com a cabeça, acocoravam-se e metiam os braços em dois orifícios existentes na base do fuste.
E foi então que veio de lá um farsante, desses que passam nas ruas a gingar os quadris e as pantalonas ao dependuro, se agacha, deixa descair as calças e fica de cu à mostra – uma peida abundante, nacarada, com um debrum preto à volta do ilhó.
Uns riam-se, outros faiscavam dos olhos.
Estive vai, não vai, para lhe espetar dois pontapés bem dados.
Mas tive medo de provocar algum escândalo na casa do Senhor e contive-me.
E agora para aqui estou eu com um problema de consciência. É que me lembro perfeitamente do cu do farsola e não consigo lembrar-me da cara do Apóstolo.
Vai-te diabo!
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 124 e ss.)

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