terça-feira, 26 de julho de 2011

NEVE DE MARÇO

Quando um homem chega a certa idade, qualquer coisa serve para lhe rebentar a bossa das recordações.
Aqui estou eu, sentado à lareira, a saborear uma palangana de arroz de espigos da horta e a ver uns farrapos de neve a desfazerem-se de encontro à vidraça. «Neve em Março, uma velha a derrete com um bafo...» – diziam os antigos. Decerto, ao dizerem bafo, estavam a pensar noutra coisa. Mas não quero fazer juízos temerários. Aliás, se o calendário nos diz que hoje é o primeiro de Março, o Borda d'Água nos ensina que a lua ainda é a de Fevereiro. A qual, má mês para ela, não nos trouxe chuva, quanto mais neve. E eu já ando com saudades duma boa nevada. Daquelas antigas, que aguentavam oito, quinze dias.
– Será desta? – perguntei-me.
E fui à janela. Afinal, só o cocuruto dos montes toucados de branco. Nos telhados, na rua, nos campos, nem réstea. Água-neve, que, mal cai, logo derrete. Mas fria como todos os diabos. Não é desta que eu tenho saudades. É da outra, daquela que, numa só noite, cobria montes e vales com um lençol branco de dois, três palmos de altura.
Saudades de a ver pela janela. Que ser obrigado a sair para o monte atrás das vacas ou das cabras, não tinha graça nenhuma. Ainda hoje me arrepio ao lembrar-me desse suplício.
Todos nós andávamos de socos ferrados. A neve agarrava-se. Um passo, uma camada; dois passos, duas camadas e assim por diante. Depressa um homem andava a meio metro ou mais do chão. De repente, vinha abaixo das andas, com grave risco das pernas, braços, costelas e nariz. Só havia um processo de evitar a catástrofe. Era dar um passo e sacudir o pé. Outro passo, outra sacudidela. Lembrávamos aquelas almalhas saltonas, a que se coloca um trambolho numa pata.
Nada fácil nem agradável para os pastores, a neve.
O mesmo se diga das donas de casa. Impossibilitadas de ir à horta, como é que elas iam cozinhar?
Os Barrosões não dispensam um caldinho de couves. «Vamos ao caldo» – dizem eles com o significado de «vamos para a mesa» ou «vamos à janta».
Noutros tempos, o «vamos ao caldo» não era nenhuma flor de retórica, não senhores.
Por norma, durante o Inverno, os Barrosões, à ceia, comiam só caldo. Ao jantar sempre havia umas batatitas, secas ou condimentadas com uma talhada de carne gorda. Mas, à noite, só caldo, em grandes tigelas, onde esfarelavam grandes carolas de broa centeia. Primeiro, deglutiam as couves e a broa. Depois sorviam as migas, deliciosamente. E, se não ficassem satisfeitos, repetiam.
Impossibilitadas de ir à horta, dizia eu, as donas de casa faziam caldo de farinha. Mas os Barrosões não gostam de caldo de farinha.
Os meus tios maternos, que eram dois, ao segundo ou terceiro dia de caldo de farinha, diziam um para o outro:
– Faz greve! Faz greve, se não nunca mais nos vemos livres disto.
Então a madrinha Ana, ante a greve dos meninos à farinha, lá se aventurava a ir à horta.
Coisa sagrada, uma horta, Roubo de horta equivalia a roubo de igreja. Uma profanação. Um sacrilégio.
Vai daí, certo Inverno, alguém se queixou de lhe terem rapinado a horta.
– Do mesmo me queixo eu.
– E eu.
Os rapazes puseram-se em campo e apanharam o ratoneiro, um da Volta, em flagrante delito.
Estavam a aplicar-lhe um correctivo de cascudos e pontapés, passa o Rodrigo, homem respeitável e respeitado, e tira-lho das mãos:
– Quietos! Largai o homem! Que mal vos fez ele?
– Anda a roubar as couves.
– E é preciso bater assim num pobre por causa dumas berças?
– A si, que é rico, não lhe fará grande diferença. Mas a nós.
– O quê! Também foi à minha horta?
– Ai você ainda não viu? Deixou-lha bonita...
– Então destes-lhe poucas...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 134 e ss.)

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