terça-feira, 5 de julho de 2011

O TEXAS

Um dia destes li no jornal uma notícia que me enterneceu, como sempre acontece quando me lembram recordações agradáveis da minha longínqua e perdida infância: o comboio a lenha, popularmente conhecido por Texas, voltou à linha do Corgo.
Estou ligado a esse brinquedo por coloridas e saudosas reminiscências. A minha família possuía uma pequena vinha na Costa de Anelhe, onde se colhe um delicioso vinho a que me habituei em pequeno e continuo a beber em velho.
A vindima era uma festa. Iam familiares, amigos e vizinhos, em alegre passeata ao longo de trinta quilómetros de caminhos celtas, por Gralhós, Cortiço, Arcos, Serra do Pindo, Veiga de Nogueira, Sapelos, S. Domingos, Rebordelo. A vinha ficava precisamente entre Rebordelo e a margem direita do Tâmega.
Quando fui pela primeira vez à vindima, pelo menos da minha lembrança, era tão pequenitates que me proibiram de vindimar, com medo de que, em vez de uvas, vindimasse os dedos.
O certo é que, andando eu por ali entretido a apanhar bagos do chão, me chegou aos ouvidos, vindo de muito longe, lá da fundura do vale, um bi-bi-bi... bi que me pôs em êxtase, como se aquilo fosse um dom de Deus e eu o eleito da sua divina graça.
Corri a um outeiro, a ver o que aquilo era. E foi então que descortinei, por entre a copa das árvores, lá para os lados do Vidago, um rolo de fumo intermitente, a riscar de branco pardo o azul do céu. E atrás do fumo, o comboio que eu nunca vira. E para ali fiquei especado, de boca aberta, a ver e ouvir a máquina, o fumo da chaminé, o colorido das três carruagens com pessoas à janela, o changla-changla das rodas nos trilhos, o bi-bi-bi... bi do apito. E quando ele desapareceu, lá para os lados de Chaves, deixou em mim a saudade da grande viagem, que nunca cheguei a realizar.
Anos mais tarde, andei algumas vezes no Texas, só para lhe ouvir o apito. Fazia-me bem aquela música de brinquedo infantil.
Depois, veio o carro. E sempre que ia a Vila Real, parava por alturas da Samardã, à espera de que o comboio aparecesse na outra margem do vale, com o seu passo de boi, o seu changla-changla, o seu apito, o seu cachimbo.
Um dia viajava comigo a mulher e o filho, ainda de colo. Parei na Samardã à espera do comboio. O garoto ficou tão entusiasmado que eu retrocedi para lhe mostrar o Texas em Vila Pouca de Aguiar, nas Pedras Salgadas, no Vidago. O menino dava upas e batia palmas ao colo da mãe.
Anos depois, deve haver agora uns vinte e cinco, mais coisa menos coisa, estando eu, a mulher e o filho à mesa, veio a talho de foice falar no comboio da linha do Cargo e da alegria que o garoto tivera ao vê-lo. Este confessou que não se lembrava de nada mas gostaria de viajar no Texas.
– E se fôssemos lá no domingo – propus eu.
– Fazer o quê? – perguntou a cara-metade.
– Ver o Texas.
– Vamos, mãe?
Lá fomos, manhãzinha dum domingo de fins de Setembro, princípios de Outubro, de sol muito doce.
À ida, tivemos uma carruagem por nossa conta. O rapaz corria duma janela à outra, eu afundei-me num cadeirão, a mulher apreciava o panorama. Viagem de príncipes.
No regresso é que foram elas.
Na estação de Vila Real estava um ror de gente. O comboio vinha atrasado. Nem admira. Aquilo era um cacho humano. Gente nos estribos, nas plataformas, no tejadilho.
A poder de cotoveladas, empurrões e calos pisados, lá conseguimos encaixar-nos. A viagem até à Régua foi um tormento. Consolava-me a ideia de que, no comboio do Douro, eu pudesse beneficiar dos bilhetes de primeira classe, ida e volta, de que dispunha, e distender os joanetes. Nesta doce esperança aguardei, na Régua, o comboio de Barca d' Alva. Quando o vi aparecer na curva, ia-me dando o fanico. De novo gente nos estribos, nas plataformas, no tejadilho.
Trazia duas carruagens de primeira classe. A muito custo, consegui pôr pé no estribo e puxar mulher e filho. Mas não passámos da porta. Dentro, havia passageiros nos bancos, no corredor, na coxia, na rede, entre a bagagem. Tudo malta jovem, estudantes e soldados que regressavam às aulas ou aos quartéis.
Nisto, chega o revisor. Reparei que todos mostravam bilhetes de terceira classe. Lembrei-me de reclamar:
– Ó senhor revisor? Então eu, que paguei bilhetes de primeira para mim, a mulher e o filho, vou aqui de pé, e estes, com bilhetes de terceira...
O homem nem me deixou acabar. Virou-se para as bancadas e disse: e disse:
– Ó malta? Então tudo aí comodamente alapado, e vai aqui este velho...
Protestei:
– Não é por mim. É pelo garoto...
Há uns vinte e cinco anos, já eu, aos olhos do revisor do comboio do Douro, era um velho... O que ele não diria, se me visse hoje...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 121 e ss.)

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