segunda-feira, 18 de julho de 2011

COMADRE RAPOSA

Aqui há tempos um meu vizinho e amigo mandou-me recado. Que o fosse ver que tinha lá uma coisa para mim.
Fui na volta do portador.
O vizinho levou-me ao fundo do pátio e abriu uma tosca porta com um tosco fecho de pau. Notei que o fazia com uns certos vagares, assim a modos de quem está para fazer uma surpresa ou pregar uma partida.
– Ora espreita – disse ele, afastando o batente do cancelo coisa de meio palmo.
Olhei pela frincha e vi, ao fundo do cortelho, uma raposa estendida.
– Está morta? – perguntei com voz pesarosa.
– Cá! São muito finas! Fingem-se mortas à espreita dum azo para se porem na alheta... Mas é bonita!
Era. Bem nutrida, pelagem um pouco mais escura do que o normal. Se no reino das raposas também há etnias, aquela era cigana.
– Bonito exemplar, sim senhor. Que lhe vais fazer?
– Se a quiseres, é para ti.
– Obrigado. Mas não seria melhor soltá-la?
– Não, que me dá cabo das galinhas... Sabes o que aconteceu ao António da Manata? Laçou uma de leite e criou-a a biberão. Tinha-a lá na eira, numa jaula de rede de arame. Sabes o que ela fez quando tinha aí uns sete ou oito meses? Escavou um túnel e fugiu.
– Ninguém lho pode levar a mal.
– Mas não sabes o resto. Naquela noite voltou atrás e matou-lhe as galinhas todas. Sabia onde elas estavam, passara meses a olhar para elas.
– Isso não quer dizer que esta te faça o mesmo a ti.
– É melhor não arriscar. Se a quiseres, dou-ta. Se não.
– Que é que eu vou fazer com ela?
– Manda-la embalsamar. Não tens lá no Porto quem te faça isso?
– Não estou a ver.
– Há um jeitoso em Sapiãos. Se quiseres vou lá contigo.
– Quando?
– Te der jeito.
– Amanhã?
– A que horas?
– Às nove.
– Combinado.
Passei o resto do dia e parte da noite a censurara-me por não ter dito ao vizinho que levava a raposa viva para o Porto e soltá-la aí por alturas da serra da Cabreira. E se ele um dia me perguntava por ela?
Na manhã seguinte, pelas nove horas, já o vizinho me aguardava com a raposa num saco atado pela boca.
– Mataste-a?
– Não. É melhor que seja o tipo a fazer isso.
– Como é que conseguiste metê-la no saco?
– Atordoei-a.
O vizinho levou toda a viagem a contar-me histórias, todas elas tendentes a provar-me que, se as raposas são finas, ele ainda o é mais. Eu ria-me.
– É por aqui – disse-me ele, indicando um estradão de acesso a um bairro de moradias novas. A do embalsamador era a última, quase encravada nas fraldas da serra do Leiranco.
Mas o homem não estava. Atendeu-nos a mulher, com ares de incomodada. Que o marido dera uma queda, partira não me lembra agora o quê, e fora parar ao hospital. Voltássemos noutro dia.
E virava-nos as costas.
Por mim retirava-me. Mas o vizinho não desarmou:
– Ouça lá.
A mulher deteve-se, a olhar-nos de soslaio, por cima do ombro.
– O seu marido não tem por aí nenhuma raposa embalsamada?
– Umas poucas.
– Então venha cá. Vamos fazer negócio.
À palavra negócio a mulher pareceu mais interessada.
– Nós trazemos aqui uma viva, não desfazendo, aquilo a que se chama a nata das raposas – continuou o vizinho. – Desconta-nos esta no preço da outra e pronto.
– E eu sei-te cá matar a raposa?
– Lá por isso mato-lha eu. Não se aflija. Mostre-nos as outras.
A mulher levou-nos a uma garagem transformada em laboratório. Havia ali um pouco de tudo: aves de todas as espécies e bicos, texugos, toirões, fuinhas, cabeças de javalis e de veados, a armadura dum boi barrosão, lobos, meia dúzia de raposas. Escolhi a que me pareceu mais compostinha.
– Quanto custa?
– Quinze contos e a viva.
Suspendi-a pela peanha e fui depô-la no assento traseiro do carro.
– Arranje-me aí um sarrafo – disse o vizinho.
A mulher trouxe um tirolete. O vizinho abriu o saco, vibrou dois golpes na cabeça à raposa e estendeu-a no chão.
– Já está.
Reparei que a raposa continuava a respirar normalmente. Ainda abri a boca para avisar: «Olha que ainda está viva»: mas, raciocinando rapidamente, voltei-me para a mulher e disse:
– Dez contos, não é?
– Pode ser.
Estendi-lhe o dinheiro e entrei para o carro. Pelo retrovisor, vi a raposa levantar-se e fugir, direita à serra. Gritei pelo vizinho:
– Entra, que estou com pressa.
Ele entrou e eu arranquei. A mulher continuava de notas na mão, a olhar para nós.
Lá na estrada, lembrei-me da cara que ela devia ter feito ao voltar-se e não ver a raposa. Deu-me riso.
– De que te ris?
– Cá duma coisa.
– Se é segredo.
– Não é segredo nenhum. A raposa fugiu...
– Como é que tu sabes?
– Vi pelo espelho.
– A sério?
– Pela minha salvação.
Abanou a cabeça:
– Pois olha: é a primeira vez que uma raposa se fica a rir de mim...

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 130 e ss.)

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