quarta-feira, 13 de julho de 2011

A PESCA

Neste último fim-de-semana, indo eu de passeio, ouvi este diálogo entre dois vizinhos, um que ia, de cacifro às costas e cana de pesca na mão, outro que vinha, de sachola ao ombro e gabela de couves na curva do braço.
– Vais até ao rio?
– Matar o vício, que na terça-feira acaba a pesca e depois só para o ano.
Esta troca de palavras trouxe-me reminiscências da minha infância que é do que eu hoje alimento os meus silêncios.
Meu pai era pescador. Todos os garotos gostam de imitar os pais. Eu não era diferente dos outros. E com um anzol improvisado dum alfinete de segurança suspenso da ponta duma vara por urna linha de costura, ia à pesca.
E o certo é que tirava bogas, escalas, uma trutita lá nos anos de el-rei.
E nem era precisa grande perícia. Os peixes eram tantos que bastava submergir o anzol e tirar por ele com um gesto rápido. Raro o lanço em que não viesse um fisgado pelas guelras, pelas barbatanas, pela cauda, por onde calhava.
De tudo isto aquele diálogo entre vizinhos me trouxe saudades. Peguei numa cana e fui até ao rio, o qual, a falar verdade, não passa dum ribeiro, e pequeno.
Antes não tivesse ido.
Primeiro, vi-me em palpos de aranha para apanhar um saltão. Os meliantes saltavam-me à frente do nariz com uns ares de galhofa e desprezo que era dum homem perder a paciência.
Estava quase a desistir, quando surpreendi um dos mais graúdos a bater uma soneca de papo para o ar num colchão de meio palmo de relva. Mergulhei sobre ele de mão em garra:
– Apanhei-te, malandro!
Eu a procurá-lo entre a mancheia de ervas que apanhara, e ele empoleirado num tojo, a rir-se de mim com um descaramento e uma falta de respeito que atiraram comigo fora dos carretas. Caí nele a mãos ambas. Fiquei com elas numa lástima, mas apanhei-o:
– Ai tu julgavas que... – dizia eu, enquanto o enfiava no anzol.
Cana em riste, dirigi-me a um poço onde, na minha infância, os peixes cirandavam em cardumes compactos.
Que desilusão! Nem poço, nem peixes...
O ribeiro da minha infância, de margens bem aparadas e águas límpidas, é agora um matagal impenetrável. Nem água se vê. Dir-se-ia que a vegetação a bebeu. De longe em longe, lá se ouve uma cantilena muito ténue, muito saudosa.
A muito custo, sempre enterrado em mato até aos peitos, fui andando ao longo da margem, na mira duma janela aberta no arvoredo por onde enfiasse o isco. Por fim, lá descortinei uma pequena clareira entre uma bétula e um salgueiro e, através dela, uns lampejos de água remansada.
Aproximei-me, pé ante pé, a medir os movimentos e a sombra, que as trutas são desconfiadas.
E não é que, dum emaranhado de silvas, tojos e urzeiras cresce para mim, com um ronco medonho, a cabeçorra dum porco-bravo?
Fui para fugir, emaranhou-se-me uma silva nas canelas, tombei de ventas, muito encolhidinho, a rezar o acto de contrição.
Como ninguém me atacasse, soergui-me nos cotovelos. O javali, um macho velho, com umas presas de palmo e cerdas em ouriço cacheiro, fugia que estrepunha direito a um montado próximo. Deu-me riso:
– Ai amigo! Tão assustado ficaste tu como eu...
Senti qualquer coisa a escorrer pela perna direita:
– Não me digas...
Afinal, não era aquilo que eu pensava. Fora uma silva que me ferrara os dentes e me deixara a sangrar abundantemente. Tomei uma resolução:
– Nunca mais vou à pesca.
Pelos vistos, o edénico rio da minha infância, de margens bem aparadas, claras águas e belas trutas, transformou-se num valhacouto de porcos-bravos.
As voltas que o mundo dá...
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 127 e ss.)

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