Tenho destes
hábitos antigos e modestos, que contrastam com o tempo em que vivo: pura sair à
noite, a dar o meu giro digestivo, nada me agrada tanto como envergar um fato
de há cinco ou seis anos, que as exigências do ofício e os rogos da Umbelina
relegaram para um canto do nosso guarda-roupa. Assenta-me como uma luva, nunca
me pareceu tão bem cortado, tão despretensioso, tão cómodo e discreto. «Já hoje
se não faz disto!», digo eu contente. E não. O próprio facto de estar um tanto
fora da moda (na gola, sobretudo) lhe dá não sei que apuro e distinção. Traz
mesmo uma pontinha de cheiro a naftalina, que lisonjeia o meu olfacto amigo da
conservação. Dois ou três anos que passou a bom recato, ao abrigo da traça,
desenrugaram-lhe as mangas e quase desvaneceram os vestígios do uso. Parece
outro, repousado. «Parece novo!», diz a Umbelina, regalada, a acaricia-lo com a
escova sedosa. E com esta vantagem sobre as coisas novas: não me exige nenhum
esforço de adaptação, sinto-me nele à vontade, sem este ar de novidade que
sempre me embaraça. As coisas usadas parecem mais familiares, mais pessoais,
menos cerimoniosas ou exibicionistas. Nem os amigos e conhecidos (o Almeida!)
que encontro na rua param a cumprimentar-me com a habitual discrição lusitana:
«Bravo, seu Artur! Com que então, farpela nova, hã? Donde é que lhe veio a
herança?» – e tal. Como se eu não
o tivesse bem ganho com o suor do rosto. Positivamente, estes nossos amigos não
nos perdoam o que se chama uma camisa lavada. Mas conseguem intimidar-me,
dar-me um remorso do privilégio. Além disso, há três coisas que, entre outras,
eu detesto soberanamente: provar um fato, cortar as unhas, ir ao barbeiro ou ao
dentista. Chego a preferir este último, palavra de honra.
Saio de casa
muito senhor de mim, gozando, de mãos nos bolsos e cigarro na boca, e penso:
«Quero eu cá saber que eles reparem?
(Reparar, dar nas vistas, o que irão dizer, etc., são formas da minha imensa
boa educação, do meu senso lusíada das «maneiras».) Saibam que tenho lá em
casa, para as ocasiões, um belo fato novo cor de mosto, às riscas, que desejo
poupar como se poupam as raras horas de alegria!» Compreenderiam eles?
De mim para
mim, orgulho-me deste nobre sentido da poupança. A certeza de que um rasgão
aberto na manga pela aresta duma chapa de zinco traiçoeira ou a mancha de
ripolin duma porta pintada de fresco me não impossibilitarão de sair amanhã de
manhã às minhas ocupações, dá-me uma sensação de conforto e bem-estar, quase de
felicidade. Chegar a casa e dizer assim à patroa: «Olha lá se fosse o novo, hã?
Que sorte!» Ou então ouvi-la: «Se não tivéssemos
outro, estavas bem arranjado!» (Tudo o que temos, incluindo as minhas roupas,
temos em comum, na dela.)
Aqui entre nós,
chega-me a apetecer dar-lhe uma tesourada, só para experimentar a inefável
alegria das dores irremediáveis. Mas nem pensar nisso! Sempre me pareceu
abominável destruir só pelo prazer de. Um crime anti-social. Não, que este
paletó (por sinal trago-o hoje vestido), no dia em que eu não precisar mais dele,
ainda pode fazer o agasalho de um pobre. E então agora, que vêm tantos bater a
esta porta, novos e velhos, desempregados, a pedir um trapo usado para se
aquecer! Mas vou adiando sempre o acto generoso. E espicaça-me um remorso: Para
que diabo é que eu hei-de conservar tão ciosamente a roupa velha? Não é porque
nós poupamos que falta aos pobres: é pelo que lhes não damos, ou lhes tiramos… Já
me tem acontecido ela dar uma coisa minha a um pedinte: o meu primeiro impulso,
ao sabê-lo, é de irritação; depois compreendo-a, e chegamos os dois às lágrimas…
Continuo a
matutar: «Que me importa a mim molhar hoje os pés, dentro deste par de sapatos
velhos, se eu sei que amanhã poderei confortavelmente encaixá-los no forro
quente e espesso das botas de calf
inglês, soda dupla, que me esperam lá em casa, sólidas, impermeáveis,
imponentes como dois granadeiros de S. M. Britânica, e como ela indestrutíveis?
Ah, não há nada, para saber o que vale um par de botas novas, como andar um dia
inteiro à chuva e na lama, com um par de sapatos rotos nos pés!» ([i])
Se eu sei... E a ideia surge-me assim, com toda a nitidez: o que
verdadeiramente importa, nestes dias de Inverno, não é andar de calçado gasto e
com pés alagados: é não ter lá em casa um par de sapatos novos para mudar.
Isto até me
sugere uma teoria nova (com sua licença) da Dor: a Dor é em geral um sentimento
relativo e social, quase uma abstracção. O que me faz sofrer, o que me fere e
magoa, não é a dor das fibras e dos ossos, mas as suas causas e condições, a
privação relativa, os contrastes, o ridículo, o orgulho ferido, a humilhação em
que o desastre ou o acidente me colocam. Sem isso, a Dor seria muito mais
tolerável, quase indiferente. Chego a ter vontade de dizer: a Dor (esta
maiúscula está-me a parecer um bocado retórica, mas enfim!) pertence ao domínio
da Sociologia. Mas cautela aí com o paradoxo! Creiam que até já deixei de
acreditar nos cidadãos bem cuidados, bem nutridos, mimados, que me vêm falar da
sua Dor (vá lá outra vez com D), da Angústia, e coisas parecidas. No fundo,
talvez não passe de remorso.
Vejam por
exemplo o Albino, coitado: o Albino chegou outro dia ao escritório com cinco
minutos de atraso. (Ê muito pontual.) Daí a pouco ninguém parava com o fedor a
benzina. Todos se queixavam, menos ele. Estava com o nariz enterrado no Borrador.
Até foi preciso abrir as janelas. «Que raio de pivete a benzina!», disse o
Ponce. «Algum de vocês matou hoje o bicho com benzina?» Risota geral… O Albino,
coitado, moita. Vermelho até à raiz do cabelo.
Compreendo bem
a sua humilhação: teria de confessar que não tem outro casaco. A benzina o
denuncia. Vida de estreiteza, de poupança. É a mãe, velhota e viúva, com quem
ele mora por não ter meios (ou ter medo) de casar, que lhe inspeciona as roupas
e lhe tira as nódoas. Estou a vê-lo nessa manhã, em mangas de camisa, em pé no
meio da casa, a bater os queixos com frio, cheio de impaciência: «Então, mãe,
não me demore, criatura! Por sua causa vou chegar tarde ao emprego!» E pela
tarde, ao voltar a casa: «Não me torne a limpar a roupa com essa bodega! Foi
uma chuchadeira pegada no escritório!» E a velhota: «Mas ó filho, tu não hás-de
andar agora com a roupinha cheia de nódoas, como um moço de taberna! Deixá-los
rir. Ao menos, porco ninguém te pode chamar.»
Há pessoas
assim, foram criadas na «decência», no «parece-mal», e o sonho delas é ir ali
para o Alto-do-se-m’intendes com uma camisa lavada e uma roupinha decente.
Perca-se tudo menos a vergonha. É quanto a vida lhes oferece, contra os
sacrifícios que por ela fazem.
Está visto que
o fedor da benzina, em si, pode incomodar, mas não deprime. (A mim dá-me volta
ao estômago, são idiossincrasias. A civilização do petróleo, do motor Diesel,
arrasa-me! Mas há quem goste, e até quem beba o pitrolino misturado com cachaça!) O que humilha, o que dói – cá
estou na minha teoria – e a sensação de acanhamento que ele produz. Anda um
homem pela rua, ou seja onde for, a espiar os outros, encolhido, vexado, a ver
se lhes descobre nos olhos, nas ventas arreganhadas, algum sinal de percepção irritada.
É como ter uma doença repugnante à vista, ou ter praticado um acto menos limpo.
É corno ter comido, por exemplo, açorda de alho, e passar o dia a restituir a
alma dele na cara do parceiro. Vexames!
É o fato, o
fato único, esta espiga. Isso é que dói. Quando os outros têm quatro ou cinco –
ou cem. Não é tanto o não ter que dói, como sentir que outros têm, ou têm
demais, o que nos falta. Mas não vamos nós além da Bota!
Ninguém teria
ousado perguntar àquele cavalheiro de idade, tão sereno e composto, o que é que
ele levava embrulhado debaixo do braço com tanto cuidado. Algum jarrão da Índia,
quem sabe lá. Ou um cache-pot de
faiança. Quase elegante que ele ia, com o seu embrulho sobraçado. E de repente
– nem sei como aquilo foi, acho que me distraí a olhar um par de meias de seda
que passou com pernas dentro – sei que ouvi um estoiro, e que o vi estendido ao
comprido, lorpamente chapado no passeio. Parece que andamos sempre à procura de
acidentes que nos tornem solidários: mais uma vez corremos uns quantos a
ajudá-lo, pusemo-lo em pé, apanhámos-lhe o chapéu, sacudimos-lhe o pó da roupa.
Magoou-se? Não foi nada. Só o susto… E o embrulho? A guita tinha-se partido, o
papel rebentara, e descobrimos o que ele levava dentro: um objecto redondo,
para uso íntimo e nocturno, com uma asa, feito em mil cacos! Mas não é tudo:
dentro da faiança barata iam bem um quilo de cebolas, que rebolaram alegremente
ao longo da valeta, em liberdade. Cebolas! (Dá vontade de dizer Cebolório!) Era impossível apanhá-las
uma por uma e metê-las no vaso escavacado. O vexame do sujeito foi tão grande
que eu até virei a cara, envergonhado. Se fosse comigo tinha chorado, podem ter
a certeza; tinha fugido, eu sei lá, capaz até de me divorciar como protesto
contra tais obrigações matrimoniais. Se fosse um jarrão de porcelana! E cheio
de bolas de ténis ou golf! Mas de
cebolas! Em volta do pobre homem foi um escarcéu de risota. E os garotos a
trazer-lhe as cebolas uma por uma. Com ar de troça…
Estas
humilhações é que doem. A dor é isso. A da pobreza envergonhada, ou da que se
quer fazer passar por outra coisa. Os dentes só nos doem verdadeiramente quando
sabemos que não podemos ir ao dentista.
Ainda outro
dia, nas corridas de obstáculos da Matinha: o visconde de Pregalhos levou um
tombo de alto lá com ele. Milagre foi não ter partido aquele espinhaço, que
além de ser o cabide onde traz suspenso o canastro de heráldica elegância, é
hoje a derradeira esperança legítima de continuidade das ancestrais virtudes da
Casa.
Muitos ais,
algum sangue, delíquios, correrias, gritinhos, ajuntamento em volta da automaca…
Mas qual, as costelas partidas não lhe doeram absolutamente nada. Portou-se –
dizem os círculos selectos – «com a estóica serenidade com que os seus Maiores
aguentavam os golpes dos Infiéis nas rudes Batalhas de Antanho». (Gosto imenso
destas palavras arcaicas. E então em maiúsculas! Oxalá não venham por aí abaixo
outros infiéis com outras batalhas menos de antanho.) Noite e dia velam-no,
além das zelosas irmãzinhas dos enfermos, anjos-da-guarda que Deus põe à
cabeceira dos cavaleiros caídos, as mais delicadas e nervosas flores da
aristocracia e da elegância. Grandes nomes. Herdeiras. Embaixatrizes. Umas
santas! (Também se fala em cenas de ciúmes.)
É muito
provável que, a tardar a soldadura das costelas felizmente fracturadas, se
restaure por um bom casório aquela espinha que os embaraços financeiros, também
históricos na Casa, traziam algo desviada do primitivo aprumo.
Foi uma honra,
uma distinção, um reclamo. O visconde, sistematicamente um dos últimos
classificados do steeple-chase,
viu-se de um instante para o outro guindado a herói do dia, e apalpa agradecido
os lombos equimosados. Acredito mesmo que os vencedores, abandonados e
esquecidos, com as suas taças de prata e diplomas de honra, se torcem de inveja
diante das objectivas pressurosas da imprensa. Aquele triunfo na derrota, ou
ascensão na queda, nunca eles o hão-de perdoar ao venturoso enfermo.
E o visconde,
na cama, todo envolto em ligaduras e adesivos, aromas, desinfectantes e
sorrisos de mel, põe os olhos no Crucificado e agradece-lhe a imperícia com que
Ele o dotou para os saltos de barreira e cancela. Abençoada fractura, dor
bendita! – Não tarda muito que um elegante casamento…
(Resolvi agora
mesmo dar o tal fato usado a um pobre.)
(Inédita, 1926-27)
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