segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O FATO COÇADO

Tenho destes hábitos antigos e modestos, que contrastam com o tempo em que vivo: pura sair à noite, a dar o meu giro digestivo, nada me agrada tanto como envergar um fato de há cinco ou seis anos, que as exigências do ofício e os rogos da Umbelina relegaram para um canto do nosso guarda-roupa. Assenta-me como uma luva, nunca me pareceu tão bem cortado, tão despretensioso, tão cómodo e discreto. «Já hoje se não faz disto!», digo eu contente. E não. O próprio facto de estar um tanto fora da moda (na gola, sobretudo) lhe dá não sei que apuro e distinção. Traz mesmo uma pontinha de cheiro a naftalina, que lisonjeia o meu olfacto amigo da conservação. Dois ou três anos que passou a bom recato, ao abrigo da traça, desenrugaram-lhe as mangas e quase desvaneceram os vestígios do uso. Parece outro, repousado. «Parece novo!», diz a Umbelina, regalada, a acaricia-lo com a escova sedosa. E com esta vantagem sobre as coisas novas: não me exige nenhum esforço de adaptação, sinto-me nele à vontade, sem este ar de novidade que sempre me embaraça. As coisas usadas parecem mais familiares, mais pessoais, menos cerimoniosas ou exibicionistas. Nem os amigos e conhecidos (o Almeida!) que encontro na rua param a cumprimentar-me com a habitual discrição lusitana: «Bravo, seu Artur! Com que então, farpela nova, hã? Donde é que lhe veio a herança?»  e tal. Como se eu não o tivesse bem ganho com o suor do rosto. Positivamente, estes nossos amigos não nos perdoam o que se chama uma camisa lavada. Mas conseguem intimidar-me, dar-me um remorso do privilégio. Além disso, há três coisas que, entre outras, eu detesto soberanamente: provar um fato, cortar as unhas, ir ao barbeiro ou ao dentista. Chego a preferir este último, palavra de honra.
Saio de casa muito senhor de mim, gozando, de mãos nos bolsos e cigarro na boca, e penso: «Quero eu cá saber que eles reparem? (Reparar, dar nas vistas, o que irão dizer, etc., são formas da minha imensa boa educação, do meu senso lusíada das «maneiras».) Saibam que tenho lá em casa, para as ocasiões, um belo fato novo cor de mosto, às riscas, que desejo poupar como se poupam as raras horas de alegria!» Compreenderiam eles?
De mim para mim, orgulho-me deste nobre sentido da poupança. A certeza de que um rasgão aberto na manga pela aresta duma chapa de zinco traiçoeira ou a mancha de ripolin duma porta pintada de fresco me não impossibilitarão de sair amanhã de manhã às minhas ocupações, dá-me uma sensação de conforto e bem-estar, quase de felicidade. Chegar a casa e dizer assim à patroa: «Olha lá se fosse o novo, hã? Que sorte!» Ou então ouvi-la: «Se não tivéssemos outro, estavas bem arranjado!» (Tudo o que temos, incluindo as minhas roupas, temos em comum, na dela.)
Aqui entre nós, chega-me a apetecer dar-lhe uma tesourada, só para experimentar a inefável alegria das dores irremediáveis. Mas nem pensar nisso! Sempre me pareceu abominável destruir só pelo prazer de. Um crime anti-social. Não, que este paletó (por sinal trago-o hoje vestido), no dia em que eu não precisar mais dele, ainda pode fazer o agasalho de um pobre. E então agora, que vêm tantos bater a esta porta, novos e velhos, desempregados, a pedir um trapo usado para se aquecer! Mas vou adiando sempre o acto generoso. E espicaça-me um remorso: Para que diabo é que eu hei-de conservar tão ciosamente a roupa velha? Não é porque nós poupamos que falta aos pobres: é pelo que lhes não damos, ou lhes tiramos… Já me tem acontecido ela dar uma coisa minha a um pedinte: o meu primeiro impulso, ao sabê-lo, é de irritação; depois compreendo-a, e chegamos os dois às lágrimas…
Continuo a matutar: «Que me importa a mim molhar hoje os pés, dentro deste par de sapatos velhos, se eu sei que amanhã poderei confortavelmente encaixá-los no forro quente e espesso das botas de calf inglês, soda dupla, que me esperam lá em casa, sólidas, impermeáveis, imponentes como dois granadeiros de S. M. Britânica, e como ela indestrutíveis? Ah, não há nada, para saber o que vale um par de botas novas, como andar um dia inteiro à chuva e na lama, com um par de sapatos rotos nos pés!» ([i]) Se eu sei... E a ideia surge-me assim, com toda a nitidez: o que verdadeiramente importa, nestes dias de Inverno, não é andar de calçado gasto e com pés alagados: é não ter lá em casa um par de sapatos novos para mudar.
Isto até me sugere uma teoria nova (com sua licença) da Dor: a Dor é em geral um sentimento relativo e social, quase uma abstracção. O que me faz sofrer, o que me fere e magoa, não é a dor das fibras e dos ossos, mas as suas causas e condições, a privação relativa, os contrastes, o ridículo, o orgulho ferido, a humilhação em que o desastre ou o acidente me colocam. Sem isso, a Dor seria muito mais tolerável, quase indiferente. Chego a ter vontade de dizer: a Dor (esta maiúscula está-me a parecer um bocado retórica, mas enfim!) pertence ao domínio da Sociologia. Mas cautela aí com o paradoxo! Creiam que até já deixei de acreditar nos cidadãos bem cuidados, bem nutridos, mimados, que me vêm falar da sua Dor (vá lá outra vez com D), da Angústia, e coisas parecidas. No fundo, talvez não passe de remorso.
Vejam por exemplo o Albino, coitado: o Albino chegou outro dia ao escritório com cinco minutos de atraso. (Ê muito pontual.) Daí a pouco ninguém parava com o fedor a benzina. Todos se queixavam, menos ele. Estava com o nariz enterrado no Borrador. Até foi preciso abrir as janelas. «Que raio de pivete a benzina!», disse o Ponce. «Algum de vocês matou hoje o bicho com benzina?» Risota geral… O Albino, coitado, moita. Vermelho até à raiz do cabelo.
Compreendo bem a sua humilhação: teria de confessar que não tem outro casaco. A benzina o denuncia. Vida de estreiteza, de poupança. É a mãe, velhota e viúva, com quem ele mora por não ter meios (ou ter medo) de casar, que lhe inspeciona as roupas e lhe tira as nódoas. Estou a vê-lo nessa manhã, em mangas de camisa, em pé no meio da casa, a bater os queixos com frio, cheio de impaciência: «Então, mãe, não me demore, criatura! Por sua causa vou chegar tarde ao emprego!» E pela tarde, ao voltar a casa: «Não me torne a limpar a roupa com essa bodega! Foi uma chuchadeira pegada no escritório!» E a velhota: «Mas ó filho, tu não hás-de andar agora com a roupinha cheia de nódoas, como um moço de taberna! Deixá-los rir. Ao menos, porco ninguém te pode chamar.»
Há pessoas assim, foram criadas na «decência», no «parece-mal», e o sonho delas é ir ali para o Alto-do-se-m’intendes com uma camisa lavada e uma roupinha decente. Perca-se tudo menos a vergonha. É quanto a vida lhes oferece, contra os sacrifícios que por ela fazem.
Está visto que o fedor da benzina, em si, pode incomodar, mas não deprime. (A mim dá-me volta ao estômago, são idiossincrasias. A civilização do petróleo, do motor Diesel, arrasa-me! Mas há quem goste, e até quem beba o pitrolino misturado com cachaça!) O que humilha, o que dói – cá estou na minha teoria – e a sensação de acanhamento que ele produz. Anda um homem pela rua, ou seja onde for, a espiar os outros, encolhido, vexado, a ver se lhes descobre nos olhos, nas ventas arreganhadas, algum sinal de percepção irritada. É como ter uma doença repugnante à vista, ou ter praticado um acto menos limpo. É corno ter comido, por exemplo, açorda de alho, e passar o dia a restituir a alma dele na cara do parceiro. Vexames!
É o fato, o fato único, esta espiga. Isso é que dói. Quando os outros têm quatro ou cinco – ou cem. Não é tanto o não ter que dói, como sentir que outros têm, ou têm demais, o que nos falta. Mas não vamos nós além da Bota!
Ninguém teria ousado perguntar àquele cavalheiro de idade, tão sereno e composto, o que é que ele levava embrulhado debaixo do braço com tanto cuidado. Algum jarrão da Índia, quem sabe lá. Ou um cache-pot de faiança. Quase elegante que ele ia, com o seu embrulho sobraçado. E de repente – nem sei como aquilo foi, acho que me distraí a olhar um par de meias de seda que passou com pernas dentro – sei que ouvi um estoiro, e que o vi estendido ao comprido, lorpamente chapado no passeio. Parece que andamos sempre à procura de acidentes que nos tornem solidários: mais uma vez corremos uns quantos a ajudá-lo, pusemo-lo em pé, apanhámos-lhe o chapéu, sacudimos-lhe o pó da roupa. Magoou-se? Não foi nada. Só o susto… E o embrulho? A guita tinha-se partido, o papel rebentara, e descobrimos o que ele levava dentro: um objecto redondo, para uso íntimo e nocturno, com uma asa, feito em mil cacos! Mas não é tudo: dentro da faiança barata iam bem um quilo de cebolas, que rebolaram alegremente ao longo da valeta, em liberdade. Cebolas! (Dá vontade de dizer Cebolório!) Era impossível apanhá-las uma por uma e metê-las no vaso escavacado. O vexame do sujeito foi tão grande que eu até virei a cara, envergonhado. Se fosse comigo tinha chorado, podem ter a certeza; tinha fugido, eu sei lá, capaz até de me divorciar como protesto contra tais obrigações matrimoniais. Se fosse um jarrão de porcelana! E cheio de bolas de ténis ou golf! Mas de cebolas! Em volta do pobre homem foi um escarcéu de risota. E os garotos a trazer-lhe as cebolas uma por uma. Com ar de troça…
Estas humilhações é que doem. A dor é isso. A da pobreza envergonhada, ou da que se quer fazer passar por outra coisa. Os dentes só nos doem verdadeiramente quando sabemos que não podemos ir ao dentista.
Ainda outro dia, nas corridas de obstáculos da Matinha: o visconde de Pregalhos levou um tombo de alto lá com ele. Milagre foi não ter partido aquele espinhaço, que além de ser o cabide onde traz suspenso o canastro de heráldica elegância, é hoje a derradeira esperança legítima de continuidade das ancestrais virtudes da Casa.
Muitos ais, algum sangue, delíquios, correrias, gritinhos, ajuntamento em volta da automaca… Mas qual, as costelas partidas não lhe doeram absolutamente nada. Portou-se – dizem os círculos selectos – «com a estóica serenidade com que os seus Maiores aguentavam os golpes dos Infiéis nas rudes Batalhas de Antanho». (Gosto imenso destas palavras arcaicas. E então em maiúsculas! Oxalá não venham por aí abaixo outros infiéis com outras batalhas menos de antanho.) Noite e dia velam-no, além das zelosas irmãzinhas dos enfermos, anjos-da-guarda que Deus põe à cabeceira dos cavaleiros caídos, as mais delicadas e nervosas flores da aristocracia e da elegância. Grandes nomes. Herdeiras. Embaixatrizes. Umas santas! (Também se fala em cenas de ciúmes.)
É muito provável que, a tardar a soldadura das costelas felizmente fracturadas, se restaure por um bom casório aquela espinha que os embaraços financeiros, também históricos na Casa, traziam algo desviada do primitivo aprumo.
Foi uma honra, uma distinção, um reclamo. O visconde, sistematicamente um dos últimos classificados do steeple-chase, viu-se de um instante para o outro guindado a herói do dia, e apalpa agradecido os lombos equimosados. Acredito mesmo que os vencedores, abandonados e esquecidos, com as suas taças de prata e diplomas de honra, se torcem de inveja diante das objectivas pressurosas da imprensa. Aquele triunfo na derrota, ou ascensão na queda, nunca eles o hão-de perdoar ao venturoso enfermo.
E o visconde, na cama, todo envolto em ligaduras e adesivos, aromas, desinfectantes e sorrisos de mel, põe os olhos no Crucificado e agradece-lhe a imperícia com que Ele o dotou para os saltos de barreira e cancela. Abençoada fractura, dor bendita! – Não tarda muito que um elegante casamento…
(Resolvi agora mesmo dar o tal fato usado a um pobre.)
(Inédita, 1926-27)


[i] O Artur devia ter lido, ao tempo, Este Drama dos Sapatos, de H. G. Wells. (J.R.M.)

Sem comentários:

Enviar um comentário