quarta-feira, 19 de setembro de 2012

APETECE-ME!

Sigo ao longo desta rua da Baixa, no tumulto da gente ociosa que vagueia e da gente apressada que regressa a casa, à hora em que o sol, já ruivo, se despede dos telhados mais altos e flameja no Castelo. Vou de nariz no ar, gozando a tépida alegria da minha segurança. Amo a cidade, as ruas alinhadas, o tráfego, o rumor, o formigueiro humano, o clarão eléctrico das montras, o asfalto que a rega deixou polido como um espelho. A cidade sorri nervosamente, e eu respondo-lhe com um sorriso de amor. Gosto dos gestos ritmados do agente de capacete claro, que rege a orquestra confusa e trepidante do trânsito. Olho, junto de um poste, os eléctricos que passam, as pernas das mulheres que se descobrem, a subir e a descer sem cessar, e os rostos felizes, sorridentes, calmos, os lábios vermelhos, os olhares lânguidos que se oferecem das vidraças dos autos reluzentes.
Apetece-me… Apetece-me… Nem sei o quê. E vibro de alegria, feliz de me sentir anónimo, arrastado, nesta hora calorosa e comovida, pela palpitação da vida urbana. Sou um burguês. Levo na mão direita, com a bengala de malaca, suspenso dum dedo enluvado, este pequeno embrulho. Sigo em frente, e paro junto duma frutaria que derrama na rua a complicada rescendência dos seus frutos dispostos em filas, em renques, em pilhas, em cestos e tabuleiros, ou suspensos de ráfias e de arames. Olho as uvas cristalinas, voluptuosas como seios minúsculos de virgens… Como a natureza perfuma a civilização e casa com ela os seus aromas para lhe dar um encanto maior! Detenho-me a aspirar a graça destes frutos, que o olhar das mulheres acarida de desejos. Frutos e mulheres, a luz do entardecer, os clarões da rua, o marulho do tráfego, tudo parece fundir-se num mesmo perfume que me dá um desejo, uma volúpia, uma euforia indefinível... Apetece-me! Apetece-me!
Nisto, vejo adiante de mim o vulto duma llIulher Nisto, vejo adiante de mim o vulto duma mulher humilde que passa, com mais pressa do que eu, em frente destas lojas, e sem as olhar. Leva uma criança ao colo, embrulhada no seu mesmo xaile, e na mão direita carrega um grande cabaz. É uma nota dissonante… Percebo-lhe as costas magras, abauladas e tímidas. De súbito escorrega perigosamente, oscila, e cai para a esquerda, sobre a criança! Correm pessoas alarmadas. Corro também, mas já não chego a tempo de a ajudar. Mãos solícitas levantam-na. Ficou vermelha – vejo-lhe o rosto magro, a expressão assustada – e o menino chora. Durante um segundo observo a angústia do seu olhar preso no filho. Depois foge à pressa, sem mesmo agradecer aos que a ergueram do chão. Leva a saia, as mãos e o xaile sujos da lama viscosa do passeio. Alguém murmura: «Foi uma casca, é um perigo!» Outros protestam: «Deviam ser obrigados a limpar os passeios!» E logo a onda rola, indiferente, ao seu destino. Cruzam-se no ar risos, murmúrios, retalhos de conversa. Uma cólera absurda ferve-me no peito. Mas porquê? Que lhe hei-de eu fazer? Partir-lhe a montra? Passo também, o incidente depressa se me funde na memória, e recaio na minha voluptuosa divagação.
Anoiteceu por completo, as lojas engolem e vomitam clientes, os transeuntes hesitam nos passeios, olham irresolutos as grandes montras que inundam de vivas claridades o pavimento escuro. Mais longe, noutra rua, um velho lívido e magro leva às costas, sobre uma saca de linhagem dobrada, um pesado tambor de ferro. Tem uma barbicha rala, cinzento-amarelada. Os seus olhos, baços e encovados, fitam o chão com o terror de o ver fugir. Doente? Cansado? Um velho. Arrasta a perna esquerda sob o peso, e pára a espaços como se esperasse cair subitamente fulminado. Sigo atrás dele, atraído, fascinado pela sua miséria, e a angústia contagia-me – sou eu que levo o peso enorme, sou eu que vou cair exausto! Sinto os músculos retesados do esforço, e arrasto já também a perna esquerda. Se ele pára, eu páro. Cada paragem me parece mais longa, e mais penoso o esforço de arrancar. O volume escorrega-lhe dos ombros, e o velho curva-se mais para ajeitá-lo melhor. Impossível!, vai cair, vai-se despedaçar, ficar esmagado, que será dele, depois? – A minha agonia é tamanha, que dir-se-ia aquele peso ir-me cair no peito. Levo a mão esquerda à cara, tapo a boca para não protestar. E não posso, não poso fazer nada! O meu embrulho, as luvas, a bengala… (Apetece-me! Apetece-me!) A multidão que passa, esta gente que trabalha e que goza, que é forte e juvenil, e nos habituámos pelos livros a supor que também sofre, nem sequer olha o velho, que lá segue o seu caminho, como os animais e os carros, no asfalto da rua. Ninguém repara nele.
Sinto de novo a cólera crescer em mim, desta vez surda, triste e impotente, contra o destino, contra mim próprio, contra este mundo egoísta. Os pequenos sofrimentos de cada dia deixam indiferente esta gente a um tempo simpática, brutal e singular. E eu sou tal qual assim… «É a nossa hora!», penso com cinismo, para me consolar. «Que fariam aos mais estes que sofrem, se pudessem também fazer sofrer!»
O velho decididamente oscila, procura firmar-se nas pernas frouxas, trôpegas, cambadas. A perna esquerda, esta minha perna esquerda que fraqueja! Adivinho-lhe a dor física, agravada pela consciência da velhice condenada, inútil, que a vida explora e calca. Crispo as mãos de raiva. Eu sou culpado! Somos todos culpados daquele sofrimento, daqueles farrapos, daque1a perna frouxa, daquele destino, da vala comum que um dia…
Dois homens detêm-se (enfim!) a olhá-lo, e os seus olhares fazem coro com os meus. Ficamos os três a distância, a avaliar o peso daquela desgraça, no meio da rua atroadora, num protesto inerte e por enquanto mudo. Qual de nós é que ousaria… Até que um diz: «Ladrões! Quem carrega assim um velho merecia que lhe dessem um tiro!» (Não sei qual deles falou.) Mas alguém sabe, porventura, o que significa esta cólera cega, inútil e cruel? Eles pararam e olharam. Eu parei e olhei. O velho recompôs-se não sei como. «Irá ele com uma pinga a mais?», diz um deles. Encolhem os ombros e afastam-se os dois a rir.
A minha raiva, depois do escape das palavras anónimas, sumiu-se. E como o velho já se perde no burburinho, sinto uma secreta advertência de que aquilo é um caso passado em julgado. Respiro aliviado, liberto do momentâneo pesadelo da responsabilidade, e afasto-me também, tão insensível ou prudente como os outros. São horas de me ir chegando à janta. No meu fundo há talvez uma certa alegria, que me vem de experimentar a piedade: a alegria de me sentir bom, de compreender a dor, de simpatizar, de me revoltar (em palavras ou pensamentos só) contra a injustiça… Parece que acabo eu de cumprir o meu dever!
Casos destes, todos nós os podemos contar. De que serve flagelar-me com o remorso do meu egoísmo, irmão de tantos outros? Julgamos cumprir o nosso sagrado dever, não é assim, só porque experimentamos a piedade que humilha, a cólera que cega. Mas os nossos braços caem inúteis, e as nossas mãos andam atadas às luvas, à bengala, aos embrulhinhos…
Sou um burguês, um burguês incorrigível!
(Seara Nova, 1927)

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