Sigo ao longo
desta rua da Baixa, no tumulto da gente ociosa que vagueia e da gente apressada
que regressa a casa, à hora em que o sol, já ruivo, se despede dos telhados
mais altos e flameja no Castelo. Vou de nariz no ar, gozando a tépida alegria
da minha segurança. Amo a cidade, as ruas alinhadas, o tráfego, o rumor, o
formigueiro humano, o clarão eléctrico das montras, o asfalto que a rega deixou
polido como um espelho. A cidade sorri nervosamente, e eu respondo-lhe com um
sorriso de amor. Gosto dos gestos ritmados do agente de capacete claro, que
rege a orquestra confusa e trepidante do trânsito. Olho, junto de um poste, os
eléctricos que passam, as pernas das mulheres que se descobrem, a subir e a
descer sem cessar, e os rostos felizes, sorridentes, calmos, os lábios
vermelhos, os olhares lânguidos que se oferecem das vidraças dos autos
reluzentes.
Apetece-me… Apetece-me… Nem sei o quê. E
vibro de alegria, feliz de me sentir anónimo, arrastado, nesta hora calorosa e
comovida, pela palpitação da vida urbana. Sou um burguês. Levo na mão direita,
com a bengala de malaca, suspenso dum dedo enluvado, este pequeno embrulho.
Sigo em frente, e paro junto duma frutaria que derrama na rua a complicada
rescendência dos seus frutos dispostos em filas, em renques, em pilhas, em
cestos e tabuleiros, ou suspensos de ráfias e de arames. Olho as uvas cristalinas,
voluptuosas como seios minúsculos de virgens… Como a natureza perfuma a civilização
e casa com ela os seus aromas para lhe dar um encanto maior! Detenho-me a
aspirar a graça destes frutos, que o olhar das mulheres acarida de desejos.
Frutos e mulheres, a luz do entardecer, os clarões da rua, o marulho do
tráfego, tudo parece fundir-se num mesmo perfume que me dá um desejo, uma
volúpia, uma euforia indefinível... Apetece-me!
Apetece-me!…
Nisto, vejo
adiante de mim o vulto duma llIulher Nisto, vejo adiante de mim o vulto duma
mulher humilde que passa, com mais pressa do que eu, em frente destas lojas, e
sem as olhar. Leva uma criança ao colo, embrulhada no seu mesmo xaile, e na mão
direita carrega um grande cabaz. É uma nota dissonante… Percebo-lhe as costas
magras, abauladas e tímidas. De súbito escorrega perigosamente, oscila, e cai
para a esquerda, sobre a criança! Correm pessoas alarmadas. Corro também, mas
já não chego a tempo de a ajudar. Mãos solícitas levantam-na. Ficou vermelha –
vejo-lhe o rosto magro, a expressão assustada – e o menino chora. Durante um
segundo observo a angústia do seu olhar preso no filho. Depois foge à pressa,
sem mesmo agradecer aos que a ergueram do chão. Leva a saia, as mãos e o xaile
sujos da lama viscosa do passeio. Alguém murmura: «Foi uma casca, é um perigo!»
Outros protestam: «Deviam ser obrigados a limpar os passeios!» E logo a onda
rola, indiferente, ao seu destino. Cruzam-se no ar risos, murmúrios, retalhos
de conversa. Uma cólera absurda ferve-me no peito. Mas porquê? Que lhe hei-de
eu fazer? Partir-lhe a montra? Passo também, o incidente depressa se me funde
na memória, e recaio na minha voluptuosa divagação.
Anoiteceu por
completo, as lojas engolem e vomitam clientes, os transeuntes hesitam nos
passeios, olham irresolutos as grandes montras que inundam de vivas claridades
o pavimento escuro. Mais longe, noutra rua, um velho lívido e magro leva às costas,
sobre uma saca de linhagem dobrada, um pesado tambor de ferro. Tem uma barbicha
rala, cinzento-amarelada. Os seus olhos, baços e encovados, fitam o chão com o
terror de o ver fugir. Doente? Cansado? Um velho. Arrasta a perna esquerda sob
o peso, e pára a espaços como se esperasse cair subitamente fulminado. Sigo
atrás dele, atraído, fascinado pela sua miséria, e a angústia contagia-me – sou
eu que levo o peso enorme, sou eu que vou cair exausto! Sinto os músculos
retesados do esforço, e arrasto já também a perna esquerda. Se ele pára, eu páro.
Cada paragem me parece mais longa, e mais penoso o esforço de arrancar. O
volume escorrega-lhe dos ombros, e o velho curva-se mais para ajeitá-lo melhor.
Impossível!, vai cair, vai-se despedaçar, ficar esmagado, que será dele,
depois? – A minha agonia é tamanha, que dir-se-ia aquele peso ir-me cair no
peito. Levo a mão esquerda à cara, tapo a boca para não protestar. E não posso,
não poso fazer nada! O meu embrulho, as luvas, a bengala… (Apetece-me! Apetece-me!) A multidão que passa, esta gente que
trabalha e que goza, que é forte e juvenil, e nos habituámos pelos livros a
supor que também sofre, nem sequer olha o velho, que lá segue o seu caminho,
como os animais e os carros, no asfalto da rua. Ninguém repara nele.
Sinto de novo a
cólera crescer em mim, desta vez surda, triste e impotente, contra o destino,
contra mim próprio, contra este mundo egoísta. Os pequenos sofrimentos de cada
dia deixam indiferente esta gente a um tempo simpática, brutal e singular. E eu
sou tal qual assim… «É a nossa hora!», penso com cinismo, para me consolar.
«Que fariam aos mais estes que sofrem, se pudessem também fazer sofrer!»
O velho
decididamente oscila, procura firmar-se nas pernas frouxas, trôpegas, cambadas.
A perna esquerda, esta minha perna esquerda que fraqueja! Adivinho-lhe a dor
física, agravada pela consciência da velhice condenada, inútil, que a vida
explora e calca. Crispo as mãos de raiva. Eu
sou culpado! Somos todos culpados daquele sofrimento, daqueles farrapos,
daque1a perna frouxa, daquele destino, da vala comum que um dia…
Dois homens
detêm-se (enfim!) a olhá-lo, e os seus olhares fazem coro com os meus. Ficamos
os três a distância, a avaliar o peso daquela desgraça, no meio da rua
atroadora, num protesto inerte e por enquanto mudo. Qual de nós é que ousaria… Até
que um diz: «Ladrões! Quem carrega assim um velho merecia que lhe dessem um
tiro!» (Não sei qual deles falou.) Mas alguém sabe, porventura, o que significa
esta cólera cega, inútil e cruel? Eles pararam e olharam. Eu parei e olhei. O
velho recompôs-se não sei como. «Irá ele com uma pinga a mais?», diz um deles.
Encolhem os ombros e afastam-se os dois a rir.
A minha raiva,
depois do escape das palavras anónimas, sumiu-se. E como o velho já se perde no
burburinho, sinto uma secreta advertência de que aquilo é um caso passado em
julgado. Respiro aliviado, liberto do momentâneo pesadelo da responsabilidade,
e afasto-me também, tão insensível ou prudente como os outros. São horas de me
ir chegando à janta. No meu fundo há talvez uma certa alegria, que me vem de
experimentar a piedade: a alegria de me sentir bom, de compreender a dor, de
simpatizar, de me revoltar (em palavras ou pensamentos só) contra a injustiça… Parece
que acabo eu de cumprir o meu dever!
Casos destes,
todos nós os podemos contar. De que serve flagelar-me com o remorso do meu
egoísmo, irmão de tantos outros? Julgamos cumprir o nosso sagrado dever, não é
assim, só porque experimentamos a piedade que humilha, a cólera que cega. Mas
os nossos braços caem inúteis, e as nossas mãos andam atadas às luvas, à
bengala, aos embrulhinhos…
Sou um burguês,
um burguês incorrigível!
(Seara Nova,
1927)
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