sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Fica comigo

Fica comigo. Daqui a nada é noite e as noites custam, a mim custam, sobretudo quando os candeeiros da rua se acendem e as árvores e os prédios fronteiros logo diferentes, quase ninguém na rua, um miúdo com um cão lá ao fundo, uma tristeza parada na tonalidade do silêncio, estes móveis e estes retratos que não me ligam nenhuma, os teus passos na escada, tu no passeio: nem vou à janela olhar, não quero olhar. Fica comigo só mais um bocadinho, dez minutos, meia hora, sei lá, o tempo inteiro. Mesmo que não fales. Mesmo que leias a revista do jornal. Mesmo que não me toques. Mesmo como se eu não existisse. Há alturas, imagina, em que penso que não existo e depois vem a aflição, o medo, o meu pulso tão rápido, a voz da minha mãe, do fundo da infância
– o que se passa contigo?
e não sei explicar, é impossível explicar porque não se passa nada de concreto, mãe, podia responder que uma coisa vaga e todavia não se trata de uma coisa vaga, trata-se de uma coisa real, verdadeira, uma sede não de água, de não sei quê, uma aflição de perda embora, que eu saiba, não tenha perdido nada, parece que está tudo como deve ser à minha volta e não está, não compreendo o que falta mas não está, tem paciência ajuda-me, fica comigo, não peço muito pois não, é difícil isto, talvez não compreendas mas é difícil isto, não preciso que finjas que te interessas, não preciso que me dês atenção, apenas, como dizia o outro, um estar aí que é já tanto, sentir-te respirar, sentir o teu cheiro, contento-me com pouco, vês, uma respiração, um cheiro, a minha mãe
– Foi sempre tão sensível aos cheiros começou a franzir-se logo com um ano ou dois
e embora seja um bocadinho exagerada, há alguma mãe que não exagere, é capaz de ser verdade mais ano menos ano, mais mês menos mês, daqui a nada, já viste, é noite e as noites custam, quando tinha febre pensava
– Daqui a pouco
é dia e sentia-me melhor como se o dia me salvasse ignorava de quê, na realidade não salvava de nada, o aspirador pela casa inteira, ruídos que eu imaginava que me confortavam e não confortavam nem meia, chinelos, loiça, um
– Poça
quando se trilhava ou quebrava uma unha, havia sempre adesivo num dedo no esforço de salvar a unha, a importância que a minha mãe dava às unhas, herdei isso dela para além do nariz, nunca vi narizes tão iguais, o meu pai
– Foste logo herdar o mais feio olha que pontaria a tua
e de facto tive pontaria, fui logo herdar o mais feio, ainda se fosse a boca, ainda se fossem os olhos, a boca que pede
– Fica comigo
os olhos que a acompanham calados
– Fica comigo
tu, para dentro, contrariado
– Estou feito
tu para dentro a odiares-me
– Olha-me esta
odiares-me exagero, farto
– Estou bem arranjado
que se percebe na prega da testa, uma concessão aborrecida
– Fumo um cigarro e vou
os cigarros eram a tua medida, fumo um cigarro e faço isto, fumo um cigarro e faço aquilo, és a única pessoa que marca o tempo pelos cancros do pulmão, o meu pai teve um, coitado, para o fim parecia um passarinho, ainda me disse num fio, na véspera de falecer
– Que ideia a tua ires logo buscar o nariz julgo que com ciúmes de não lhe ter ido buscar parte nenhuma e realmente, sempre podia ficar-lhe com a barriga mas não engravidei nunca, graças a Deus, apesar de solteira fazia as minhas coisas mas tomava cuidado, eles não não queriam casar
– Estamos melhor assim não estamos?
não estávamos melhor assim mas de que me servia contrariá-los, a verdade é que também não insistia muito, acabava por dar-lhes razão, pensava
– Estamos melhor assim
cada um com a sua liberdade eu que queria lá saber da liberdade, queria um homem em casa, mas detesto passar camisas a ferro e ver o estendal da marquise cheio de peúgas a secarem sinceramente não me apetecia, um homem dá um trabalhão que não acaba, quando adoecem chás atrás de chás, moribundos, piegas, quando não estão doentes não param na sala, há sempre o velório do tio de um amigo, sempre um rapaz que precisa de uma mãozinha no carburador do automóvel à noite, chegadas de madrugada porque os carburadores complicados e além disso cheiram a perfume e deixam marcas de baton no colarinho, que esquisitos os carros, o teu cigarro já a meio, tu em silêncio, as últimas fumaças de pé
– Disse que até acabar o cigarro
e a chupá-lo como um danado, de bochechas côncavas, a cara de repente magrinha, uma argola de fumo, duas argolas de fumo, o filtro esmagado no cinzeiro
– Vou andando
enquanto eu gritava para dentro
– Fica comigo
embora calada, quer dizer ouvias de certeza as minhas súplicas caladas porque respondias
– Talvez volte amanhã
e quando um homem promete
– Volto amanhã
refere-se a daqui a um mês, isto com sorte, a desculpa ao telefone
– Tenho tido trabalho que nunca mais acaba
e o trabalho que nunca mais acaba a loira do cabeleireiro que, por ser gorda, exige tempo, mais segredinhos, mais cócegas naquela extensão toda, por acaso conheço-a
– Tudo bem Florbela?
brincos que são argolas enormes, vestido três números abaixo, o cãozinho, nota-se o soutien à transparência sustentando dois mundos, se te digo
– A Florbela
uma expressão de espanto
– Quem é?
mas os olhinhos alarmados que não enganam ninguém, a Florbela mais nova do que eu, vinte e sete, vinte e oito anos e eu quase quarenta, um princípio de papada, uma variz traiçoeira, um cabelo branco que encontrei ontem no espelho, não, três, qualquer dia vou à Florbela pintar isto, os cabelos brancos, palavra de honra, desanimam, a Florbela
– Não há quem te ponha a vista em cima
eu, para dentro
– E a ti não há quem te estrangule cabra acompanho-te à porta sem coragem de repetir
– Fica comigo
visto cá de cima, do patamar, uma rodela de calvície, já te agarras ao corrimão, já desces mais devagarinho, a porta da rua fecha-se quase sem barulho, isto é num estrondo insuportável, volto para dentro, sento-me no sofá, comparo o meu peito com o da Florbela e perco, comparo-me toda com a Florbela e perco, a minha mãe faleceu igualmente, há seis meses, sobra o seu nariz na minha cara, alguma coisa sua permanece, já viu e, à falta de melhor, sorrio. Não sei a quem se destina o sorriso mas alguém há-de encontra-lo um dia destes.  

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