Fica comigo. Daqui
a nada é noite e as noites custam, a mim custam, sobretudo quando os candeeiros
da rua se acendem e as árvores e os prédios fronteiros logo diferentes, quase
ninguém na rua, um miúdo com um cão lá ao fundo, uma tristeza parada na tonalidade
do silêncio, estes móveis e estes retratos que não me ligam nenhuma, os teus passos
na escada, tu no passeio: nem vou à janela olhar, não quero olhar. Fica comigo
só mais um bocadinho, dez minutos, meia hora, sei lá, o tempo inteiro. Mesmo
que não fales. Mesmo que leias a revista do jornal. Mesmo que não me toques.
Mesmo como se eu não existisse. Há alturas, imagina, em que penso que não
existo e depois vem a aflição, o medo, o meu pulso tão rápido, a voz da minha
mãe, do fundo da infância
– o que se
passa contigo?
e não sei
explicar, é impossível explicar porque não se passa nada de concreto, mãe,
podia responder que uma coisa vaga e todavia não se trata de uma coisa vaga,
trata-se de uma coisa real, verdadeira, uma sede não de água, de não sei quê,
uma aflição de perda embora, que eu saiba, não tenha perdido nada, parece que
está tudo como deve ser à minha volta e não está, não compreendo o que falta
mas não está, tem paciência ajuda-me, fica comigo, não peço muito pois não, é
difícil isto, talvez não compreendas mas é difícil isto, não preciso que finjas
que te interessas, não preciso que me dês atenção, apenas, como dizia o outro,
um estar aí que é já tanto, sentir-te respirar, sentir o teu cheiro, contento-me
com pouco, vês, uma respiração, um cheiro, a minha mãe
– Foi sempre tão
sensível aos cheiros começou a franzir-se logo com um ano ou dois
e embora seja
um bocadinho exagerada, há alguma mãe que não exagere, é capaz de ser verdade
mais ano menos ano, mais mês menos mês, daqui a nada, já viste, é noite e as noites
custam, quando tinha febre pensava
– Daqui a
pouco
é dia e
sentia-me melhor como se o dia me salvasse ignorava de quê, na realidade não
salvava de nada, o aspirador pela casa inteira, ruídos que eu imaginava que me
confortavam e não confortavam nem meia, chinelos, loiça, um
– Poça
quando se
trilhava ou quebrava uma unha, havia sempre adesivo num dedo no esforço de
salvar a unha, a importância que a minha mãe dava às unhas, herdei isso dela
para além do nariz, nunca vi narizes tão iguais, o meu pai
– Foste logo
herdar o mais feio olha que pontaria a tua
e de facto
tive pontaria, fui logo herdar o mais feio, ainda se fosse a boca, ainda se fossem
os olhos, a boca que pede
– Fica comigo
os olhos que a
acompanham calados
– Fica comigo
tu, para
dentro, contrariado
– Estou feito
tu para dentro
a odiares-me
– Olha-me esta
odiares-me
exagero, farto
– Estou bem
arranjado
que se percebe
na prega da testa, uma concessão aborrecida
– Fumo um cigarro
e vou
os cigarros
eram a tua medida, fumo um cigarro e faço isto, fumo um cigarro e faço aquilo,
és a única pessoa que marca o tempo pelos cancros do pulmão, o meu pai teve um,
coitado, para o fim parecia um passarinho, ainda me disse num fio, na véspera
de falecer
– Que ideia a
tua ires logo buscar o nariz julgo que com ciúmes de não lhe ter ido buscar
parte nenhuma e realmente, sempre podia ficar-lhe com a barriga mas não engravidei
nunca, graças a Deus, apesar de solteira fazia as minhas coisas mas tomava cuidado,
eles não não queriam casar
– Estamos melhor
assim não estamos?
não estávamos
melhor assim mas de que me servia contrariá-los, a verdade é que também não
insistia muito, acabava por dar-lhes razão, pensava
– Estamos melhor
assim
cada um com a
sua liberdade eu que queria lá saber da liberdade, queria um homem em casa, mas
detesto passar camisas a ferro e ver o estendal da marquise cheio de peúgas a
secarem sinceramente não me apetecia, um homem dá um trabalhão que não acaba,
quando adoecem chás atrás de chás, moribundos, piegas, quando não estão doentes
não param na sala, há sempre o velório do tio de um amigo, sempre um rapaz que
precisa de uma mãozinha no carburador do automóvel à noite, chegadas de madrugada
porque os carburadores complicados e além disso cheiram a perfume e deixam
marcas de baton no colarinho, que esquisitos os carros, o teu cigarro já a
meio, tu em silêncio, as últimas fumaças de pé
– Disse que
até acabar o cigarro
e a chupá-lo
como um danado, de bochechas côncavas, a cara de repente magrinha, uma argola
de fumo, duas argolas de fumo, o filtro esmagado no cinzeiro
– Vou andando
enquanto eu
gritava para dentro
– Fica comigo
embora calada,
quer dizer ouvias de certeza as minhas súplicas caladas porque respondias
– Talvez volte
amanhã
e quando um
homem promete
– Volto amanhã
refere-se a
daqui a um mês, isto com sorte, a desculpa ao telefone
– Tenho tido
trabalho que nunca mais acaba
e o trabalho que
nunca mais acaba a loira do cabeleireiro que, por ser gorda, exige tempo, mais
segredinhos, mais cócegas naquela extensão toda, por acaso conheço-a
– Tudo bem
Florbela?
brincos que
são argolas enormes, vestido três números abaixo, o cãozinho, nota-se o soutien
à transparência sustentando dois mundos, se te digo
– A Florbela
uma expressão
de espanto
– Quem é?
mas os
olhinhos alarmados que não enganam ninguém, a Florbela mais nova do que eu,
vinte e sete, vinte e oito anos e eu quase quarenta, um princípio de papada,
uma variz traiçoeira, um cabelo branco que encontrei ontem no espelho, não,
três, qualquer dia vou à Florbela pintar isto, os cabelos brancos, palavra de
honra, desanimam, a Florbela
– Não há quem te
ponha a vista em cima
eu, para dentro
– E a ti não
há quem te estrangule cabra acompanho-te à porta sem coragem de repetir
– Fica comigo
visto cá de
cima, do patamar, uma rodela de calvície, já te agarras ao corrimão, já desces
mais devagarinho, a porta da rua fecha-se quase sem barulho, isto é num estrondo
insuportável, volto para dentro, sento-me no sofá, comparo o meu peito com o da
Florbela e perco, comparo-me toda com a Florbela e perco, a minha mãe faleceu
igualmente, há seis meses, sobra o seu nariz na minha cara, alguma coisa sua permanece,
já viu e, à falta de melhor, sorrio. Não sei a quem se destina o sorriso mas
alguém há-de encontra-lo um dia destes.
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