Pura aparência
Suponho que no princípio dos princípios, antes de
havermos inventado a fala, que é, como sabemos, a suprema criadora de
incertezas, não nos atormentaria nenhuma dúvida séria sobre quem fôssemos e
sobre a nossa relação pessoal e colectiva com o lugar em que nos encontrávamos.
O mundo, obviamente, só podia ser o que os nossos olhos viam em cada momento, e
também, como informação complementar importante, aquilo que os restantes
sentidos – o ouvido, o tacto, o olfacto, o gosto – conseguissem perceber dele.
Nessa hora inicial o mundo foi pura aparência e pura superfície. A matéria era
simplesmente áspera ou lisa, amarga ou doce, azeda ou insípida, sonora ou
silenciosa, com cheiro ou sem cheiro. Todas as coisas eram o que pareciam ser
pela única razão de que não havia qualquer motivo para que parecessem doutra
maneira e fossem outra coisa. Naquelas antiquíssimas épocas não nos passava
pela cabeça que a matéria fosse “porosa”. Hoje, porém, embora sabedores de que,
desde o último dos vírus até ao universo, não somos mais do que composições de
átomos, e que no interior deles, além da massa que lhes é própria e os define,
ainda sobra espaço para o vazio (o compacto absoluto não existe, tudo é
penetrável), continuamos, tal como o haviam feito os nossos antepassados das cavernas,
a apreender, identificar e reconhecer o mundo segundo a aparência com que de
cada vez se nos apresente. Imagino que o espírito filosófico e o espírito
científico deverão ter-se manifestado num dia em que alguém teve a intuição de
que essa aparência, ao mesmo tempo que imagem exterior captável pela
consciência e por ela utilizada como mapa de conhecimentos, podia ser, também,
uma ilusão dos sentidos. Se bem que habitualmente mais referida ao mundo moral
que ao mundo físico, é conhecida a expressão popular em que aquela veio a
plasmar-se: “As aparências iludem”. Ou enganam, que vem a dar no mesmo. Não
faltariam os exemplos se o espaço desse para tanto.
A este escrevinhador sempre o preocupou o que se esconde
por trás das meras aparências, e agora não estou a falar de átomos ou de
subpartículas, que, como tal, são sempre aparência de algo que se esconde.
Falo, sim, de questões correntes, habituais, quotidianas, como, por exemplo, o
sistema político que denominamos democracia, aquele mesmo que Churchill dizia ser o
menos mau dos sistemas conhecidos. Não disse o melhor, disse o menos mau. Pelo
que vamos vendo, dir-se-á que o consideramos mais que suficiente, e esse,
creio, é um erro de percepção que, sem nos apercebermos, vamos pagando todos os
dias. Voltarei ao assunto.
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