Hoje,
10 de Junho, dia de Portugal e das Comunidades, levantei-me com o sol e saí
para os campos a pensar em Luís de Camões. Há quantos anos teria morrido?
Pus-me a fazer contas pelos dedos, método outrora aprendido com mestre Saias e
ainda hoje infalível. Quatrocentos e tal anos. Há quatrocentos e muitos anos
que o imortal cantor dos Lusíadas morreu miseravelmente num miserável catre de
misericórdia e foi a enterrar envolto num lençol cedido por esmola. Hoje
ninguém sabe onde lhe param os ossos.
Mas
todos sabem onde lhe pára a obra. Todos sabem que ele é, de longe, o) maior
poeta de Portugal e um dos maiores do mundo. O que ninguém saberá é que Luís de
Camões sempre foi o meu poeta predilecto e aquele de quem mais poesias sei de
cor.
E
para provar a mim mesmo que ainda estou em forma, recitei, calhelha fora, o
soneto «Aquela triste e leda madrugada» e as redondilhas «Sobolos rios que vão».
O
soneto fala-nos de coitas de amor a que eu, com o decorrer dos anos, fui
ficando imunizado, mas de modo algum insensível.
As
redondilhas, da renúncia aos prazeres deste mundo com vista a alcançar a
bem-aventurança no outro.
Neste
ponto, que Luís de Camões me perdoe, mas não estou muito de acordo. Ele era um
homem culto e, decerto, sabia o que dizia. Mas eu não passo dum campónio que,
apesar da idade, ainda
aprecio as coisas boas desta vida. Não todas, evidentemente, mas as que me
restam e às quais ainda não estou disposto a renunciar. Esta «leda madrugada»,
esta aragem, este perfume, esta deliciosa sinfonia dos pássaros no silêncio dos
campos. Os tentilhões, as rolas, os pombos bravos, as codornizes, os cucos,
as poupas, as andorinhas,
os pardais, as calhandras, os melros, os
rouxinóis.
«Tale!
Lá está um» – disse para comigo. E avancei, pé ante pé, para o tronco dum castanheiro,
donde me parecia vir o canto. Ali
estive, de nariz no ar e olhos arregalados, um ror de tempo. Por fim lá descortinei o pequeno
cantor empoleirado num raminho da copa da árvore, mesmo por cima da minha cabeça.
Quedei imóvel, respiração
suspensa, literalmente embebido naquela suave melodia, a perguntar a mim mesmo
como é que um pássaro tão pequeno podia cantar tão bem.
Ainda
eu não acabara de formular a pergunta, já ele levantava voo. Temi que fosse
para longe. Mas não. Apenas mudou de árvore. Aproximei-me para ouvir de mais
perto.
De
repente, lembrei-me daquela história de Manuel Bernardes que reza assim:
«Estando
um monge em matinas com os outros religiosos do seu mosteiro, quando chegaram
àquilo do salmo onde se diz «que mil anos à vista de Deus são como o dia de
ontem que já passou», admirou-se grandemente e começou a imaginar como aquilo
podia ser. Acabadas as matinas, ficou em oração, como tinha de costume, e pediu
afectuosamente a nosso Senhor se servisse de lhe dar a inteligência daquele
verso.
Apareceu-lhe
ali no coro um passarinho, que, cantando suavissimamente, andava diante dele,
dando voltas duma para outra parte, e deste modo o foi levando pouco a pouco
até um bosque que estava junto do mosteiro, e ali fez seu assento sobre uma árvore;
e o servo de Deus se pôs debaixo dela a ouvir. Dali a um breve intervalo (conforme
o monge julgava) tomou voo e desapareceu com grande mágoa do servo de Deus, o
qual dizia, mui sentido:
–
Ó passarinho da minha alma, para onde te foste tão depressa?
Como
o passarinho não voltasse, voltou o monge para o mosteiro, onde ninguém o reconheceu.
Havia passado trezentos anos enlevado no breve gorjeio do passarinho...»
«Olha
que espiga! E se a mim me aconteceu o mesmo?»
Corri
para casa.
Afinal
continuava tudo na mesma.
Todos
os vizinhos que encontrei me reconheceram.
Pardeus!
Que alívio...
VIVA
LUÍS DE CAMÕES!
Bento da Cruz,
PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p.
174 e ss.)
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