Até
há bem pouco tempo, a rua onde moro devia ser das mais sossegadas e bucólicas
do Porto. Tinha pouco movimento e, mesmo por debaixo das janelas das traseiras,
pastavam vacas.
Anos
depois, expulsaram as vacas e fizeram dois campos de treino. Já não era a mesma
coisa, mas, ainda assim, o enquadramento dos relvados e das árvores que lhes
plantaram à volta, mantinham,
quase intacto, aquele ar campestre que tão bem faz à vista e ao espírito.
De
repente, há uns dois anos, apareceram uns monstros de ferro e aço, decerto
concebidos e executados no Inferno, e viraram tudo com o de baixo para cima. Os
campos de treino ficaram no osso. Mas nem esse escapou. Foram-se a ele a tiros
de dinamite.
Durante
meses, dia e noite, comboios ininterruptos de grandes camiões carregados de entulho,
provocavam terramotos na rua.
Diariamente,
durante as pegas de fogo, a casa estremecia, os cristais desfaziam-se uns de
encontro aos outros nas prateleiras, os
vidros das janelas e os azulejos dos quartos de banho estalavam, as paredes
abriam fendas de alto a baixo. Um pavoroso filme de terror.
Comecei
a ter pesadelos.
O
desta noite foi de morrer. Sonhei que os monstros estavam a fazer à Praça e à
Avenida da liberdade, o mesmo que fizeram à zona envolvente do Estádio das
Antas. A estátua de D. Pedro IV, a
Ninfa, o Almeida Garrett, as árvores, os edifícios, tudo de patas para o ar.
Fiquei
tão impressionado que, mal acordei, vesti-me à pressa e fui até à Praça.
Felizmente ainda lá está. E com ela, as recordações da minha juventude.
Quando
vinha ao Porto, o meu falecido tio José instalava-se na pensão Avenida, ali à
entrada da Rua Sampaio Bruno, onde hoje está um banco.
Eu,
na altura estudante, acorria a pedir-lhe a bênção. Com a bênção vinham uns
cobres e uns bifes de boi bem regados a maduro tinto pelas tascas da Travessa
do Bonjardim. Eu gostava daquilo.
Um
dia o meu tio apareceu acompanhado por um vizinho, o Domingos do Fecha, em Peireses
conhecido pelo Carancho. Vinham ambos em negócio de batata
que, naquele ano, não tivera grande saída.
Foram
cada qual por seu lado e combinaram encontrar-se ao meio-dia no Imperial, um
dos cafés mais emblemáticos do Porto de antanho.
Estava
eu e o meu tio comodamente sentados à mesa a saborear a bica, grande estardalhaço
à porta. Toda a minha gente voltou a cabeça. E, no silêncio que se gerou,
ouviu-se nitidamente o grito de guerra do Fecha.
–
Carancho!
Meu
tio levantou-se de golpe e correu à porta. Eu segui-o. O Fecha arremetia com o
porteiro:
–
Carancho! Julgas que sou algum berdamerda ou quê? Não trago gravata, mas trago
aqui dezoito contos no bolso.
Meu
tio, perdido de riso, passou o braço pelos ombros do Fecha:
–
Está calado que ainda te roubam... Vamos embora. Para que diabo andas tu com
dezoito contos no bolso? Se quiseres entrar, vamos comprar uma gravata, que,
por melhor que seja, não
te custará mais de cinco mil réis...
–
Que gravata, que nada, Carancho! Não sou nenhum cão de coleira...
Enfatuados
tempos em que se não podia entrar no Imperial sem gravata.
Hoje
até de tronco nu se lá entra.
Bento da Cruz,
PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p.
166 e s.)
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