Há
um mês que não vinha a Peireses. Julguei que ninguém dava pela minha falta.
Pois enganei-me. Primeiro, uma gata a quem costumo brindar com umas aparas do
talho, mal me viu, começou
a destilar ternura dos olhos:
–
Ingrato! Eu para aqui perdida de amores por ele, e este vadio deixa passar um
mês sem me visitar...
–
Os teus males de amor sei eu quais são e o remédio que têm. Chega-te para lá,
se não ainda levas algum pontapé que passo contigo aos astros...
A
tinhosa da gata, enquanto lhe não encher o fole, não me larga. Se estou parado
roça-se-me nas pernas, se ando, mete-se-me à frente dos pés. Uma chata de todos
os tamanhos. Só há um processo de me ver livre dela. É atirar-lhe um bom naco
de carne. Nem sei como ainda a aturo.
–
És de bom tempo...
Levanto
a cabeça e vejo a poupa empoleirada no telhado, de asa encolhida e bico murcho.
–
Olá vizinha? Que modos são esses? Desgosto ou apenas cansaço?
–
Cansaço, rapaz. Os filhos não me dão um momento de folga. Sempre de goelas abertas, a reclamar
o cibato. E como tem chovido e os insectos rareado, vejo-me perdida para os
calar. Estava mesmo agora a passar pelas brasas enquanto eles dormem a sesta.
Mas diz-me cá: a que se deve tão prolongada e estranha ausência?
–
Compromissos, Princesa, compromissos. Compromissos incontornáveis, como agora dizem os nossos políticos e os nossos articulistas.
Dias de anos de pessoas de família, um seminário dito científico, donde saí a
saber menos do que quando lá entrei, a reunião anual dos colegas de curso.
–
E onde reunistes?
–
«Varandas do Zézere».
–
o Zézere não é um rio?
–
Pois é.
–
E os rios têm varandas?
–
«Varandas do Zézere» é um simpático hotel sobranceiro à «Barragem do Cabril».
–
Barragem do Cabril? Nunca tinha ouvido falar. Por acaso não teria sido de lá
que o célebre Cabrilho partiu à descoberta das costas da Califórnia?
–
Ó Princesa! Não brinques. Cabril é uma pequena albufeira a quem a nossa dos Pisões,
se a encontrasse, era bem capaz de lhe fazer o que a baleia fez a Jónatas:
engolia-a dum trago...
–
E que mais viste tu?
–
A Sertá.
–
Para fritar os peixes da barragem?
–
Sertã é uma vila, Princesa.
–
Quem mora numa sertã deve estar frito.
–
Frito estou eu com as tuas ironias.
–
Desculpa e continua.
–
Entre a Sertil e Vila de Rei subimos a um cabeço, ou marco geodésico, com os
seus 800 metros de altitude e umas vistas deslumbrantes. Para onde quer que um
homem se volte tem à frente dos olhos uma vastidão de horizontes que se confundem
com o azul cinzento do céu ou do infinito. Dizem que é o «Centro de Portugal»...
–
«Centro de Portugal»? Ó vizinho: que eu saiba, Portugal não é uma circunferência?
–
Nunca tinha pensado nisso.
–
Então pensa um pouco melhor e depois diz-me como é que se determina o centro
dum quadrilátero. E não me venhas para cá falar de marcos grodésicos com 800
metros de altitude, quando
eu tenho aqui a um golpe de asa o do Larouco a 1500. Isso nem parece teu...
–
Desculpa, Princesa.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 172 e s.)
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