terça-feira, 13 de setembro de 2011

O SETECÚS


Vi o anúncio, aliás profusamente divulgado urbi et orbi, do «II Festival Gastronómico do Cabrito de Barroso» e vim por aí acima a salivar por uma boa caldeirada. Cheguei a Montalegre e vi tudo deserto. Nem admira. Chovia e ventava que tinha demoncre. Perguntei ao primeiro que apareceu:
– Então essa feira do cabrito?
– Para já não vejo nada. Parece que têm uma barraca aí para o Toural.
Fui até lá. Encontrei um amplo pavilhão de vendas com um bom fornecimento de cabritos prontos a serem cozinhados. Dirigi-me à senhora do balcão:
– Que tal vai o negócio?
– Estamos a começar.
– Vejo pouca gente.
– Estão em reuniões. Um colóquio sobre «Agricultura Biológica em Barroso» lá para a Cooperativa e um outro sobre «Deficientes físicos» aí para a Câmara.
– Estava a referir-me a forasteiros.
– Bem. O tempo não ajuda. Mas ainda é cedo. Eles virão.
– Com certeza que sim. Gosto em vê-la.
Ainda dei por ali uma volta à procura de parceiros para o almoço. Como não encontrasse ninguém, esqueci a caldeirada e refugiei-me em casa.
E agora aqui estou eu de pés à lareira e cabeça à janela das minhas recordações.
O bailado das chamas têm sobre mim o efeito que um fio de água a correr duma torneira exerce sobre as crianças. A elas, o fio de água estimula-lhes o reflexo do chichi. A mim, o bailado das chamas estimula-me a bossa das recordações.
Tenho muitas ligadas a cabras e cabritos. Escolho uma ao acaso.
Um dia, teria eu os meus doze anos, fui a Cambezes comprar cabras. Eu, meu pai e o João Sapateiro. Ignoro se entre eles havia alguma sociedade. Eu não tinha rasca na assadura. Ia ali apenas como tocador. Tocador de gado, sublinho. Não vá por aí alguém pensar que eu ia ali como tocador de gaita, embora a levasse no bolso.
Chegámos a Cambezes ao pôr-da-sol, hora em que os rebanhos começam a descer dos montes.
– Ó santinha? Quer vender cabras? – íamos perguntando às velhas que desciam à rua a estremar a rês.
– Depende do preço.
– Peça.
– Mande você.
Já tínhamos umas vinte justas, quando uma velha de queixo-de-anho e olhinhos de bruxa no bioco dum surrado cochiné preto, se abeira de nós e diz:
– Eu era capaz de lhes vender umas cinco.
– Já só precisamos de quatro.
– Venham comigo.
Entrámos num pátio e a velha indicou as cabras à venda, entre elas uma peleirosa a cair de podre, que já nem sequer servia para atrair um lobo a um fojo.
– Essa nem dada – exclamou o meu pai.
– Escolham outra.
Nós escolhemos e, depois de muito marralhar, arrematámos as cabras a dezoito escudos por cabeça.
Entrementes escureceu.
– Ó João? – disse meu pai. – O melhor é ficarmos cá e partir amanhã de manhã.
– Também acho. Se nos metemos à serra de noite arriscamo-nos a ficar sem elas.
– Vamos ali ao Nobre.
Que era um tipo que o meu pai conhecia da tropa.
Vínhamos nós a descer a rua, salta de lá o Florentino dos Carneiros:
– Ó senhor Manuel? Você por aqui?
– Olha rapaz – e o meu pai explicou a razão da nossa presença.
– Ofereço-lhes a minha casa.
– Obrigado, mas.
– Até levava a mal. Façam favor de subir.
O Florentino dos Carneiros, também conhecido pelo Setecus, devido ao jeito que ele tinha de andar, de pernas hirtas e levemente afastadas, mãos nos bolsos das calças, tronco para a frente e cu espetado para trás, andava na Volta e instalava-se periodicamente no forno de Peireses. E como o palheiro do meu pai ficasse paredes-meias com o forno, por norma era de lá que o Florentino se fornecia de palha para o leito da família e de feno para a manjedoura da égua. De modo que não queria deixar fugir a oportunidade de obsequiar o meu pai. Filou-o logo pelas abas do casaco.
– Até levava a mal – repetia.
A casa do Florentino era de dois pisos. A corte da égua no rés-da-chão e a cozinha no primeiro andar.
Na cozinha, meia dúzia de trastes, a pedra do lar, uns guiços de lenha, um catre de madeira, tudo duma simplicidade a roçar pela pobreza. Mas com que fidalguia de maneiras, com que manifesto modo de agradar nos recebeu. Obsequiou-nos com uma escudela de batatas secas e um leito de palha estendida no soalho com frinchas. Adormeci a rir-me das larachas e brejeirices que o Florentino, já deitado, dirigia à cara metade.
Tenho dormido em colchões de penas, de sumaúma, de molas, ortopédicos e outras marcas de renome. Mas não me lembro de noite tão regalada como a que passei nas palhas do Florentino.
De manhã, além de nos obsequiar com um mata-bicho de pão e aguardente, o nosso prestimoso hospedeiro foi-nos ajudar a reunir as cabras, umas vinte e quatro, se a memória me não falha, e despediu-se com pena de nos ver partir:
– Querem que lhas vá encaminhar?
– Obrigado, Florentino. Não será preciso.
Por acaso era. Deram-nos água pela barba o raio das cabras. Decerto compreenderam que as levávamos para o exílio e, enquanto conheceram o terreno, era a ver quem mais se escapulia por aqueles montes fora. Vimo-nos em palpos de aranha para as sacarmos do termo de Cambezes. Só quando estranharam o terreno, já na serra das Treburas, conseguimos metê-las ao rego.
E foi então que eu, olhando para elas com olhos de ver, me comecei a rir.
– De que te ris, rapaz? – perguntou meu pai.
– A velha endrominou-nos.
– Qual velha?
– A bruxa a quem você comprou as quatro cabras. Repare ali naquela. Não é a peleirosa que você não queria nem dada?
– Oh, raisparta a velha! Era um homem voltar atrás e desfazer-lhe a cabra nas ventas.
Em contraste com o reprovável procedimento desta velha de Cambezes vou contar a encantadora história duma outra de Carvalhais anos mais tarde. Um indivíduo perguntou-lhe:
– Não me quer vender uma cabra?
– Quanto me dá por ela?
– Oitenta escudos.
– Por esse preço não vendo.
– Então quanto quer por ela?
– Uma nota de cinquanta outra de vinte.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 168 e ss.)

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