quinta-feira, 1 de setembro de 2011

ARROZ DE LEBRE


Como, desde que transpus os esconsos umbrais da terceira idade, todos os anos tenho feito, também em Setembro me vacinei contra a gripe. Valeu-me a pena... Após uma lauta Consoada na aldeia, fosse da água que apanhei na cabeça, fosse do vinho que embuti no bucho, passei a Noite de Fim de Ano e os primeiros quinze dias de Janeiro de molho. Um ataque conjunto de gripe, virose, resfriado, constipação, esgana, bronquite, asma e outras patologias de igual cariz e malignidade, iam passando comigo ao «semintendes». Salvou-me a solicitude da minha comadre que, informada do meu estado, acorreu prestes com dois frangos caseiros:
– Bote-lhe umas canjas bem apuradas e verá como fica bom num instante.
– Não seria melhor um suadoiro, como, antigamente, se receitava em casos destes?
– É a mesma coisa, compadre. Bote-lhe umas canjas bem quentes e verá como sua...
E assim foi. Oito dias a caldos de galinha e fiquei mais rijo e fero do que se tivesse ido ao «Congresso de Medicina Popular de Vilar de Perdizes». A tal ponto que, na quarta semana de Janeiro e da minha convalescença, voltei a Peireses.
Como sempre, fui recebido pelo meu irmão Manuel com mostras de grande e fraterna alegria:
– Julguei que nunca mais aparecias.
– Tens alguma coisa à minha espera?
– Uma lebre.
– Oh, diabo! Vinha resolvido a continuar a caldos de galinha. Mas, se me falas em arroz de lebre, o dito por não dito.
– Vou mandar prepará-la.
– Para que horas?
– Sete e meia.
– Lá estarei.
– Mas não te atrases que o arroz não espera.
– Vai descansado.
Passei o resto da tarde a salivar pelo arroz de lebre, petisco raro para os tempos que correm e, às sete e meia em ponto, lá estava.
– Queres a sopa primeiro? – perguntou o meu Irmão.
– Nem primeiro, nem depois. Venha o arroz.
– Aí vai ele – disse a minha cunhada, colocando a panela a meio da mesa.
Fumegava e rescendia que era um regalo. Atirei-me a ele com uma sofreguidão pantagruélica. E, ao terceiro copo, comecei a ficar eufórico e a rir-me das patifarias que as lebres me têm feito.
A primeira de que me lembro, teria eu uns seis ou sete anos. Ouvira dizer, e eu acreditara, que as lebres dormem de olhos abertos. Vai daí, andando eu com as vacas num lameiro que tem uma pequena poula por cima da levada, descubro uma na cama, entre uns tojos. Como eu tivesse um pequeno sacho ao ombro e ela não fugisse, muito embora me parecesse de olhos fitos em mim, pensei: estás a dormir... estás-me no papo... E aproximei-me, a pezinhos de lã.
Mas no átimo de lhe jogar a pancada, a tipa dá um salto por cima de mim e vai-se embora. Insultei-a:
– Brejeira, atrevida, sem-vergonha... Abusar assim da inocência duma criança...
Não lhe chamei "pedófila.. porque, ao tempo, ainda ninguém falava dos escândalos da Casa Pia de Lisboa.
A última aconteceu aqui há uns dois meses. Ia eu lá numa calhelha solitária, entre touças de carvalhos e muros antigos, ouço grande restolhada de cães a latir, cada vez mais perto. Estugo o passo para ver o que era, avisto uma lebre, acossada por dois podengos e um perdigueiro, a escapulir-se na minha direcção. Costumo trazer sempre comigo uma bengala de cerquinho. Quadrei-me com ela no meio da calhelha. Lebre já eu tenho, disse para comigo. Mas no momento de lhe jogar a cachaporrada ao espinhaço, a puta aplica-me um golpe de karaté aos tampos do peito e atira comigo de cu...
– Devia ser esta – disse o meu Irmão, a rir-se da farsada – era a única da espécie que por aí andava.
– Então estou vingado.
E enchi o prato pela terceira vez.

Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 159 e ss.)

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