No
dia 14 do corrente, uma sexta-feira, estive vai-não-vai para meter-me no carro
e passar a Peireses. Reconsiderando, optei por ficar. Isto por várias razões,
duas das quais, pelo seu peso e importância, merecem registo.
Primeira:
era Dia de Namorados e eu não queria
passá-lo longe da minha. Ainda pensei em ir e enviar-lhe de lá, por correio azul, em sinal de que me não
tinha esquecido do dia nem dela, uma cartinha apaixonada com um coração varado
por uma setra.
Mas
os tempos mudam e hoje, suponho, já ninguém escreve à mulher amada cartinhas de
amor timbradas por corações varados por setras.
Há as mensagens pelo telemóvel, pelo e-mail e outros requintes de tecnologia
dos quais eu, velho caturra, pouco ou nada percebo. Resolvi, portanto, ficar
junto da minha amada e oferecer-lhe, simbolicamente, uma rosa encarnada.
Segunda
razão: tendo eu perguntado, pelo telefone, como ia por lá o tempo, me responderam:
–
De obrija ovelha...
Que
é o máximo que se pode dizer.
Chamavam-se
de «obrija ovelha» àqueles dias de água-neve, frigidíssimos, em que as ovelhas mais velhas ficavam
de tal maneira «obrijadas» ou entanguidas que perdiam o andar e o contacto com
o rebanho. Encostavam-se às paredes e pata ali ficavam resignadas a entregar a
alma ao criador e os ossos ao lobo. Os pastores é que se não resignavam a
perder o richelo. Uma ovelha, por
mais escanzelada que passasse o Inverno, se conseguisse chegar à Primavera, com
sol no céu e mesa farta na terra, sempre ganhava umas febras de modo a poder,
sem vergonha do dono, ser
morta e servida à mesa em dias de trabalho colectivo, verbi gratia: ceifa, malhada, recolha de feno, apanha de batatas.
Era aquilo a que se chamava «carne esfoladia» e prato muito apreciado nos
trabalhos do Verão. Por isso, quando as ovelhas obrijavam, os pastores botavam-nas
às costas e traziam-nas para a corte.
Andei
com algumas ovelhas obrijadas ao lombo e, ao contrário dum madrigal às «Meninas
do Vale do Sado», agora muito em moda, nunca «tive carrapatos atrás das
orelhas»...
Desgraçadamente,
os baldios de Peireses desapareceram e, com
eles, os rebanhos e os pastores. Mas os «dias de obrija ovelha» continuam. Por isso me não
aventurei. E como tivesse ficado metido em casa, li algumas coisas a respeito
do Dia dos Namorados ou Dia de S. Valentim.
A
maioria dos historiadores fala de dois Valentins, ambos mártires e ambos do
século III da nossa era. Um deles era bispo e foi parar à cadeia donde saiu a
caminho do martírio. Antes de sair, porém, teve artes de fazer chegar às mãos
da filha do carcereiro, por quem se tinha apaixonado, uma cartinha de amor e despedida.
Outro era um simples presbítero que desobedeceu ao imperador. Este, um tal
Claudius II, proibiu os casamentos para evitar que os rapazes não quisessem ir
ou desertassem do exército. Compadecido dos jovens apaixonados o presbítero
Valentim casava-os em segredo. Sabedor do caso, o imperador mandou-o matar.
A
memória dos dois Valemins celebra-se a 14 de Fevereiro. Daí a conotação do Dia de S. Valenltm com o Dia dos Namorados.
Esta
a versão dos historiadores católicos. Depois vem a dos ateus. Dizem eles que a
instituição do Dia de S. Valentim
como o Dia dos Namorados não passou
duma manobra da igreja católica para cristianizar as Lupercalia, festas pagãs em honra de Juno, rainha dos deuses e protectora
das mulheres, durante as quais um jovem tinha de escolher um parceiro de sexo
oposto para ver o que aquilo dava, o que facilmente se adivinha. No fundo, uma festa
da fertilidade para celebrar o início da Primavera, a qual, entre os romanos, principiava a
15 de Fevereiro.
Considerando
o empenho, para não dizer fúria, da igreja católica em varrer da face da terra
tudo o que cheirasse a paganismo, esta
versão é, para mim, a mais verosímil. Mas, de modo algum, a mais simpática. Essa deixei-a
para o fim. Diz ela que a razão de associar o dia 14 de Fevereiro ao Dia dos Namorados, provém do facto de
ser, por essa altura, que os pássaros machos começam à procura de fêmea para
acasalar.
Como
fui sempre um perdido por ninhos, ontem, dia 28, igualmente sexta-feira, mau grado o tempo continuar
de «obrija ovelha», vim por aí acima. Fiz uma viagem tormentosa, sempre debaixo
de água e nevoeiro e vim encontrar a casa transformada num frigorífico, ou «frisa»,
como dizem os meus vizinhos que estão ou estiveram na América. Não «obrijei»,
porque ainda tive forças para acender a lareira, ligar o aquecimento no quarto
e, com o adjutório dum saco de água quente, dormi um sono de justo. Acordei com a alegria duma réstea
de sol nos olhos. Equipei-me a preceito e saí para os campos.
Desde
a minha infância passarinheira que sou capaz de, pelo canto dos pássaros lhes
adivinhar toda a vida amorosa.
E
como sei também que, em Barroso, os tordos são dos primeiros a nidificar e o
fazem, de preferência, nos carvalhos, por volta do meio dia lá estava eu numa
touça, sentado num cepo, nariz
ao alto, à procura de qualquer coisa que se parecesse com um ninho, quando
descubro, ali a dois ou três metros, um corvo empoleirado num galho seco e a
olhar para mim com cara de caso. Interpelei-o:
–
Conheces-me dalgum lado?
–
Desde que nasceste.
–
Estás a reinar comigo?
–
Podes crer. Quando tu vieste a este mundo já eu por cá andava há uns bons
trinta anos.
–
Pois olha que estás bem conservado...
–
Um corvo aos cem anos está no melhor da vida. Mas não era disso que eu te
queria falar.
–
De que era então?
–
Dum meu antepassado que foi grande amigo de S. Bento a quem chegou a salvar a
vida.
–
Eu sei. Ou ignoras que também fui beneditino?
–
Bem me enganaste.
–
Porquê?
–
Podias ter ido viver para uma gruta, levares-me contigo, chegares a santo, subirmos ambos
aos altares.
–
Ainda estamos a tempo.
–
Tarde demais.
–
Porquê?
–
Depois de velho ficaste com fracas ventas para santo.
–
Deixo crescer a barba e fico outro.
–
A barba não faz o monge. Mas basta de conversa fiada. Quando é que te resolves a mandar
pintar o S. Bentinho da Capela?
–
Eu?!
–
Não me digas que não sabes que o S. Bentinho da Capela foi lá mandado colocar
por um teu avoengo de nome Bento Marinheiro, e que, desde então, todos os primogénitos
da família lhe herdaram o nome e a obrigação de zelar pela imagem. Da minha lembrança,
era Bento o teu bisavô, o teu avô, o teu padrinho e agora tu que és a vergonha
de todos porque tens a imagem do Santo Patriarca e do meu ilustre antepassado
numa lástima.
–
Olha que não linha reparado nisso...
–
Então repara. Todas as imagens da Capela foram pintadas de novo, menos o S. Bento,
o qual, se me não engano, até foi relegado para a peanha mais pequena e mal
acabada do altar. Quanto
à mudança de poiso, ainda te desculpo. Agora que deixes a imagem do Santo e do
Corvo de cara suja e roupa velha junto de meia dúzia de colegas todos de cara
pintada e roupinha nova, não
te perdoo.
Regressei
a casa a pensar naquilo. E agora aqui estou eu com uma dúvida: não sei se vi
realmente o corvo ou se o sonhei. Pelo
sim, pelo não, e em descargo da minha consciência, vou entender-me com o senhor
abade.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS – Crónicas de Barroso (p. 162 e ss.)
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