Aqui há dias, estando eu a desfolhar um jornal de Montalegre
do tempo da Primeira República, deparei com esta curiosa expressão: «Fulano,
que gosta de serrar sempre de cima.» Ora aqui está um dito em português que,
para as gerações mais novas, é latim. Quem é que hoje se lembra dos serrinhas,
ou serranchins,
como nós também lhe chamávamos? Eu, e só Deus sabe com que saudades.
Quando meu pai, aí pela década de trinta do século passado,
resolveu levantar casa sobradada por administração directa, justou, entre
muitos outros artistas, uma parelha de serrinhas então famosa. Eram eles o
Milagrete e o Tintafina, ambos minhotos e sérios, quando se não riam, como
diria Mestre Saias, para quem, «minhotos, burros bagueiros, socos abertos e
chapéus de palha, é tudo a mesma canalha».
Meu pai deu uma volta com eles pelos lameiros de touça,
indicou-lhes os carvalhos a transformar em soalho, caibros e forro e disse-lhes
que o resto era com eles. E foi. Durou-lhes a empreitada de Março a Outubro.
Eu, ao tempo pastor das vacas, convivi tanto com eles, que,
se não serro madeira, é porque não quero. Lá como se faz, sei eu. Deita-se o
carvalho abaixo, apara-se-lhe a lenha, descortiça-se, aplaina-se, pauta-se a
bitola das tábuas com um cordel embebido em tinta e esticado de ponta a ponta e
monta-se o toro na burra. Depois um dos serrinhas sobe para o pau e outro,
logicamente, fica por debaixo. E aí é que entra a filosofia da metáfora supra.
O lugar de cima é o mais cómodo. Pelo menos, não se apanha com o serrim nos
olhos. Dizer que «fulano gosta de serrar sempre de cima», equivale a dizer que
escolhe sempre o melhor lugar. Chamem-lhe tolo…
Enquanto olhava pelas vacas, entretinha-me a esculpir cabos
de rocas com a ponta duma navalha de meia-lua que era todo o meu orgulho. Não a
largava da mão. E uma noite em que estávamos todos à ceia, família e artistas,
puxei dela para cortar a côdea. Diz-me de lá o Tintafina, que gostava muito de
se divertir comigo:
– Andas aí todo teso com a navalha, julgas que não há outra
para ela no mundo, e, afinal, eu tenho aqui uma melhor do que a tua.
– Mostre.
O Tintafina mete a mão ao bolso das calças e saca de lá uma
naifa a meter nojo. Ri-me:
– Vamos lá a ver qual delas corta melhor?
– A tua até pode cortar melhor, admito. Mas a minha faz
coisas que a tua não consegue. Nem que se mate.
– O quê, por exemplo?
O Tintafina volta-se para a minha mãe e diz:
– Ó patroa? Empreste-me aí um alfinete, uma segurança ou
qualquer coisa do género.
Minha mãe estendeu-lhe um gancho do cabelo:
– Serve isto?
– Perfeitamente.
E depois, para mim:
– Ora a ver se a tua é capaz de fazer isto?
E, dizendo, dispôs os dois objectos em cima da mesa, à
distância de três palmos um do outro. E eu com sete olhos. E ele, com uns
vagares e uns trejeitos de ilusionista, a aproximar a navalha do gancho. E toda
a minha gente a gozar o entremez. De golpe, o gancho dá um salto e crava-se na
lâmina. Eu nunca tinha visto tal arte-mágica na minha vida. Rendi-me. Oh,
Tintafina dum raio.
Mas não foi só pelo magneto que o Tintafina se tornou para
mim um homem das Arábias. Foi por um outro traste para mim ainda mais estranho.
Nada mais nada menos que um cavalete de pintor. Também meu pai estranhou tal
apetrecho na bagagem dum serranchim. E o Tintafina contou. Que um tio dele,
também serrinha, pelo fim da vida, para não morrer de fome, concebera aquele
estratagema: vender a serra e comprar cavalete, paleta, pincéis, tintas e uma
boa resma de pratos com a silhueta do Castela de Guimarães pintada. Depois ia
lá para os jardins da fortaleza e armava o laço aos turistas. Um prato branco
no cavalete, paleta na mão esquerda, pincel na direita, olho atento. À
aproximação dos visitantes, fingia que pintava. E, se eles parassem a olhar,
metia conversa. Que mais isto e aquilo, a pintura ainda demorava, mas, caso
estivessem interessados numa recordação de Guimarães, coisa original e
destinada a valorizar-se com o tempo e a morte do artista, que não vinha longe,
tinham ali meia dúzia deles já prontos. Era só assinar. Os papalvos caíam que
nem tordos. Ele fazia um sarrabisco nos pratos e impingia-os pelo dobro ou o
triplo do preço de fábrica. Raro o dia em que não apurava para a malga do caldo,
o quartilho do vinho e o maço dos cigarros. Morreu consolado.
A pensar no futuro, o Tintafina salvara da lixeira o atelier ambulante do tio. E um domingo
por outro, para treinar a mão, dizia ele, armava-o ao sol e entretinha-se a
borrar tela ordinária.
Um dia o Abade de S. Vicente da Chã, que tinha vindo dizer
missa a Peireses, vê aquilo e pergunta:
– Ó Tintafina? Tu és pintor?!
– Formado pelas academias. A minha vocação é a pintura,
senhor abade. Mas, como ninguém ma compra, tenho de me agarrar à serra.
– Serias capaz de pintar umas Alminhas do Purgatório?
– Alminhas, a manta, o que o senhor abade quiser.
– E quanto me levas?
– Tenho de ver a obra primeiro.
– Aquelas que estão ali à entrada de S. Vicente.
– Já sei. E é precisa tábua nova?
– A tábua serve. A pintura é que desapareceu com o rodar dos
séculos.
– Quinhentos mil réis.
– Estás maluco? Isso é o preço duma vaca.
– E o senhor abade sabe o preço das tintas? As tábuas,
principalmente velhas, são muito porosas. Absorvem mais tinta num minuto do que
o meu bigode vinho num ano. E o trabalho que aquilo dá? E o génio do artista?
Tudo isso vale dinheiro.
Depois de muito regatear, justaram a obra por duzentos e
cinquenta mil réis. O Tintafina levou quatro domingos seguidos a pintar as
alminhas. A coisa saiu mais tosca e berrante do que seria de esperar dum
serrinha. Parecia o debuxo do rancho folclórico de S. Torcato, terra natal do
Tintafina, a saltar às fogueiras de S. João. Sem embargo, o abade, partindo do
princípio de que a finalidade das alminhas é impressionar os pecadores, e mais
impressionante do que aquilo só o próprio Inferno, gratificou generosamente o
presumível Van Gogh de São Telicates.
Entretanto chegou Outubro e, os serrinhas, como, durante o
Inverno, ninguém lhes desse trabalho, recolheram a penates. Concomitantemente,
o retábulo das almas do Purgatório não resistiu às primeiras chuvas.
O abade ficou fulo. E mal soube que o Tintafina, com a
chegada de Março, regressara a Peireses, mandou-o chamar. Que viesse
urgentemente. O Tintafina foi. O abade colocou-o bem defronte das alminhas, fez
carranca e inquiriu:
– Que me dizes tu a isto?!
– O quê, senhor abade?
– Não vês nada de anormal?
– Eu não.
– Onde estão as Alminhas do Purgatório pelas quais me
esmifraste trezentos mil réis?
– Ó senhor abade? Isso nem parece seu. Ora diga-me uma
coisa. O que é o Purgatório?
– Um lugar onde as almas dos justos se purificam pelas
chamas antes de serem admitidas na Bem-aventurança. E daí?
– Dê graças a Deus, senhor abade. As alminhas que eu aqui
lhe pintei, acabaram de se purificar, foram para o céu. Que mais queria vossa
reverência?
Serrava sempre de cima, o Tintafina.
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 82 e ss.)
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