Enganei-me. Afinal pela manhã houve
pássaros. Discretos, tímidos, um pouco parvinhos, lá cantavam aqui e além o seu
pio desconcertado. Devem usar ainda daqueles relógios da minha infância marca
Roscoff, que eram gordos como os abades do seu tempo e lembravam no trabalhar
uma locomotiva. Hoje os pássaros usam relógios electrónicos. E por isso a
maioria não compareceu. Está aliás um lindo tempo e foram parvos no rigorismo
dos seus cronómetros. Amanhã começa o Carnaval e já talvez não tenham sido tão
parvos como isso para se não acanalharem com as carnavalices. Em todo o caso
acendemos o fogão para promovermos a casa de sepulcro a mansão humana. Cá estou
a aquecer os meus pés mortais enquanto garatujo estas minhoquices. Mas aquela
moedeira histérica na barriga voltou a chatear-me, apesar do saco de
medicamentos com que tento dissuadi-la. Vai este inferno tirar-me o resto dos
meus dias? Não quero maçar mais o destino com o requerimento de outro romance.
Acabou. Mas ao menos, que diabo, um pouco de sossego neste bocado de carne para
ir sendo humano. E isso não é talvez de ser demais para o estupor do destino me
obsequiar.
*
Nunca mais. Quando este dobre de sinos
nos dá um rebate na alma, a nossa imaginação, de economia proletária, o que nos
lembra é que não mais veremos os amigos, os familiares, a nossa casa e assim.
Mas o nunca mais é infinito. Nunca mais veremos esses amigos e o resto, mas
ainda o que será a História amanhã, o que será o país, a sua possível
dissolução, a extinção das espécies vegetais e animais, a extinção da espécie
humana, o planeta morto, o fim do sistema solar com o apagamento do sol, a
extinção do Universo, a infinidade dos tempos depois de morto o Universo, o
silêncio interminável do vazio. O nunca mais estabelece assim uma desproporção
inimaginável entre o simples facto da tua morte e o infinito que lhe responde.
Nunca mais. É o vazio eterno que corresponde a uma vida que findou…
*
E ao almoço apareceram os Mários Braga
que a Regina desafiara ontem para o repasto de hoje. Habitualmente vamos com
eles ao Café do Zé. Mas desta vez opuseram-se. Tinham carro novo e quiseram
exibi-lo à nossa estupefacção. Andava. Mas do lado de trás, que era o nosso
sítio, os caroços da estrada manifestavam-se excessivamente. E como ambos eles
são pouco evoluídos para amarem a barulheira do Café do Zé e a força e
abundância dos seus pratos de especialidade, como o cozido em quantidade para
pesos-pesados e a fartura dos molhos dos bifes e bacalhau, levaram-nos ao
Curral dos Caprinos, que é um restaurante na Várzea de Sintra. E nós
deixámo-nos ir. É uma casa «típica», no género do tecto e paredes adornadas
excessivamente de braços de alhos, instrumentos domésticos entre eles, muitos
cornos. Comeu-se. Bebeu-se. Pagou-se. A Regina não se mostrou compreensiva,
mesmo para os adornos, entre eles as cornaduras. E concluiu, no fim da factura,
que o mais elevado de tudo eram os preços. Como ela é que é a ministra das
Finanças e os dedos me não ficaram queimados, não achei.
E agora vou desbastar a montanha de
jornais da semana para compor a digestão. Ou descompor.
VF
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