No domingo fui ao Porto. Havia que cumprir
um preceito de amizade com a Fernanda Irene que fazia o seu doutoramento na
segunda. E apanhar na onda outras amizades a cumprir também como a da
Mariberta, do Costa Marques e do Resende. Eu ia receoso deste estupor do irmão
corpo que deu agora em histérico, justamente na idade de ser sensato e sossegado.
Mas enfim, não se portou muito mal. Também lhe dei distracção para o distrair e
comer e beber para lhe suavizar as birras e torná-lo mais compreensivo. O
doutoramento foi uma festa bonita. A tese – que é um calhamaço para aqui à
espera de o desbastar todo, mas que já lera em parte e recomecei desde a
primeira folha – é uma extensão da linguística até à literatura (e aí entro eu
também com o Para Sempre). E da
linguística os motivos são os dícticos,
ou seja os elementos que «mostram» ou indicam uma presença («este», «aqui»,
«agora») centrada no locutor. E a passagem à literatura faz-se sobretudo pelo «4empo».
Óptimo. Estava com «boa casa» a assistir. E a doutoranda foi exuberante. Eu
disse-lhe no fim que o seu lugar era no parlamento ou comício, porque ela tem a
veia da Passionária. A Mariberta, sempre boa rapariga e despachada, apesar de o
seu pezinho começar a recusar-se a entrar na dança. E o Franklim a ceder um
pouco às exigências da rabugem que a idade lhe vai exigindo. Alimentaram-me com
um almoço que a Mariberta cozinhou e eu classifiquei com 20 valores – e sem
«cunhas».Quanto ao Costa Marques – como me impressionou. Magríssimo, orelhas
pendentes, rosto afuselado e já um pouco translúcido de matéria ectoplásmica.
Queixou-se-me das negas da memória que lhe abre hiatos no discurso mental.
Mesmo a ver a TV há interrupções dessa energia mental. E eu que me ocupei
dessas desgraças no Em Nome da Terra,
a sair talvez em Maio, tive para toda a degradação da velhice um rápido
comentário interior, dizendo
apenas que é uma merda. Conheci também pessoalmente uma mocinha que me escreve
às vezes chamada Magda Laires, adoradora da literatura ou seja do imaginário
que ela fixou nos meus livros. Lá lhe dei os meus conselhos de avô – que ela é mais nova do que a Rita. E
levámo-la connosco na visita
ao Resende – o que a deslumbrou. Resende, sempre igual a si mesmo na sua forma
adorável de um eterno riso juvenil e de uma arte que é a melhor que nos coube
no nosso tempo português. Lá estava com telas enormes, cheias agora de uma claridade
de quem só agora nascesse para a vida. Brancos amarelos azuis numa larga irradiação
para lá dos limites do que poderia reduzi-los ou fechá-los numa imediata realidade,
no seu peso e densidade terrestre. Respira-se nelas largamente e o imaginário
abre-nos à
liberdade com a libertação daquilo mesmo que por vezes é identificável. Grande
pintor. Maravilhoso artista que soube promover ao intangível o real que não
esqueceu. E à noite houve um grande jantar de confraternização e congratulação
dos colegas da Fernanda Irene. Fiquei ao pé do Óscar Lopes. Dissemos coisas
transcendentes. Suponho que a grande diferença de outrora para hoje se chama
Gorbatchev. Ou chamar-se-á apenas velhice.
E é tudo. Conversei o meu tanto também
com o professor Pottier
que veio de Paris argumentar a tese. Mas já me esquecido do que dissemos. Tomei
o rápido no dia seguinte. Almocei no comboio. Estava a Regina e o Lúcio à
espera em Santa Apolónia. E finda a festa, o irmão corpo recaiu logo na
patifaria. Queria mais. Não há mais. Agora é aguentar. Ele e eu, que também sou
gente.
*
Mas deu-se hoje um grande acontecimento
e era indecente deixá-lo passar. Que diria a História amanhã se eu o ocultasse e
viesse a sabê-lo por portas travessas? Tenho os meus deveres para com o futuro
e uma consciência à moda antiga em que estas faltas pesam arrobas. E o
acontecimento é este – fui hoje comprar um fato. Estou já a ouvir as
gargalhadas do cepticismo a cobrirem-me de dúvida metódica. Ai não acreditam?
Então vão à Rua dos Fanqueiros e perguntem. A dos Fanqueiros está cheia de
lojas desta farraparia. Corri-as todas. Mas por fim achei. Eu andava nisto há
anos. Não acreditam outra vez, é claro. Há anos. Bati primeiro as lojas da
avenida da Igreja, que está mais ao pé e tem material em conta. Mas não havia
para a minha elegância e o meu garbo. Venha mais tarde, diziam-me, temos aí a
chegar novo sortido e vai ter por onde escolher. Mas depois metia-se a chuva, a
má disposição para a aventura, a vontade de ir remediando com o meu
guarda-roupa e assim se passaram tempos. Hoje que estava sol e voltei do Porto
cheio de arremesso, dispus-me a arrancar. Para remediar previamente as
contendas domésticas, levei a Regina com o seu conselho responsável. E lá
andámos na dos Fanqueiros para baixo e para cima. Vestia um casaco
e a Regina dizia – então não se está mesmo a ver que te fica largo? E realmente,
observando-me ao espelho sem preconceitos, aquilo parecia um fato de esmola. E
então mudávamos de loja e fazia pontaria para outro mais comedido. Apertava bem, cintava bem com um certo donaire. E a Regina dizia – então não
estarás mesmo a ver que te fica apertado? E redizia – então não estarás mesmo a
ver que te fica apertado? E realmente, observando-me com olho desprevenido ao
espelho, aquilo parecia fato de defunto bastante ósseo e metida que lhe fosse
uma camisola de agasalho, rebentava os botões. O problema era extremamente
difícil porque o número 52 era para a barriga de um abade, que enfim não tenho,
e o número 50 era para o vazio de um tísico, que não é bem o meu caso. O leitor
que me está a acompanhar quebra já de comoção. Mas a glória é dos obstinados e
eu tenho a minha quota-parte de obstinação, ou seja do tão querido e simpático
burro. Até que enfim achei um fato à medida. Era um 52, mas costurado com mão
somítica, o que lhe deu a medida de 51,5 – que não há no catálogo. Filei-o
logo. Havia agora que tirar a prova da calça a ver se acompanhava. Mas a mão
somítica de quem a talhou exagerou e na figuração de burro a cilha era
apertada. Alarga-se, disse a menina que me queria passar a andaina. E lá ficou para
o alargamento. A Regina calou-se, que para isso é que foi comigo. Largou cinco
dele como sinal e sexta à tarde lá me irá buscar a fardeta inteira. Esquecia-me
de um contra, mas esse é generalizado. É que hoje as calças de origem modesta
levam seda (seda?) nas pernas até ao joelho para se não parecerem logo com um
trapo de cozinha. E isso dá uma geleira quando se vestem pela manhã. Mas talvez
isso tenha o seu benefício e é obrigar-me a encolher-me com o gelo da seda e
ficar assim mais conforme com a esbelteza. E agora, fato novo, só para ir bem
vestido para o paraíso.
*
Falta agradecer aqui uma coisa ao bom do
Luís Amaro. Tem
ele um olho feroz para as gralhas de um livro e eu lembrei-me de o propor como
revisor do meu novo romance. Foi aceite com alegria. Então ele sugeriu-me a
leitura prévia do dactilografado para ir já limpo para a tipografia. Lá mo leu.
E que razia.
A repetição dos «mas» e dos «eras», as vírgulas amais ou a menos, as maiúsculas
e minúsculas – levou tudo uma barrela. E agora até dá gosto. Às vezes o meu
granito beirão lã resistia – e deixei ficar. Mas quase toda a sua limpeza era
tão premente que o meu granito nem chegava a calcário. E lá fui dizendo
que sim, que sim. Só falta agora que algum leitor mais casmurro me diga do
livro todo que não. Será uma estupidez não se gostar da minha obra, ó safados.
Mas se o inferno existe é para ter os seus inquilinos e não abrir falência.
E é para
lá que ireis todos vós, ó infelizes, se vos não curvardes à minha omnipotência.
E à maneira do Sena dir-vos-ei desde já que se não cairdes de cócoras é porque
a Natureza vos fez de substância característica do boi. Disse. Ah, esquecia-me:
o Luís
Amaro disse que todo o meu livro era uma carta de amor. Gostei. E fiquei a
pensar comigo que essa carta a venho escrevendo à Rute (de Apelo da Noite), à Guida (de Cântico
Final), à Hélia (de Rápida, a Sombra),
à Sabina (de Signo Sinal) e sobretudíssimo
à Sandra (de Para Sempre) e à Oriana
(de Até ao Fim). Fim.
VF
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