Qual a ciência que domina o nosso tempo?
Ou seja a que fundamentalmente a exprime? Porque deve havê-la como houve o tipo
de arte cultivado. No século passado creio que foram as ciências naturais.
Antes, não sei, as matemáticas? como não sei se houve realmente uma «ciência»
mas apenas esboços delas. A ciência dominante no nosso tempo foi a física e
mais proximamente de nós talvez a química. Como a arte do século passado foi a
literatura, sobretudo o romance e para o fim já a poesia – que dominou o nosso
século na literatura. Mas a nossa grande arte foi a pintura. Creio porém que
todas elas – ciência e arte – se caracterizaram pela destruição. A expressão maior da física foi o nuclear e aí a bomba
atómica. A da química foi, com as armas derivadas dela, a ameaça de
desorganização genética. Em todo o caso, a destruição maior da ciência foi a da
confiança nela. Não apenas pelo facto da segurança na sua verdade com o
acréscimo do mistério proporcional ao que revela, mas ainda pela margem enorme
de subjectividade na sua interpretação e desenvolvimento, nos «paradigmas»
orientadores de que fala Thomas
Kuhn: já se reflectiu, por exemplo, em que só alguns séculos depois da
solução de Copérnico
os sábios, que a conheciam, acabaram por aderir a ela? Mas no domínio das
chamadas «humanidades», a grande inovação foi a questionação da linguagem e com
ela a destruição do que sempre nos pareceu uma evidência, ou seja que a língua
não punha em causa o pensar. Ou seja que o pensar não dependia da língua que o
traduzia. E esta simples palavra «traduzir» diz já tudo, ou seja que o
pensamento existia antes da língua
porque lhe era independente. Quando eu era rapaz e fui convidado para lente, pensei
logo na minha «tese» de doutoramento a qual seria um confronto do «período
hipotético» grego com o latino, ou seja das «orações condicionais» numa língua
e noutra. Porque me fazia confusão que certos valores gregos não existissem em
latim – como já era confuso que os chamados «verbos médios» não existissem em
latim a não ser esquisitamente nos chamados verbos «depoentes» (ou seja, que
tinham deposto a forma activa). Nessa
idade juvenil intrigava-me que as duas línguas clássicas não se ajustassem
inteiramente uma à outra, mas não media (e como?) a tremenda significação desse
desajustamento. Só, aliás, aqui há uns anos eu soube em Benveniste que os verbos
médios gregos deram origem ao que muito intrigava os filósofos no entendimento
de certas categorias aristotélicas.
Mas perdi-me. Ah, já sei talvez. Queria
eu dizer que possivelmente, como coroação de toda a ciência do nosso tempo,
marcado pela destruição, é a
linguística ou mais prosaicamente a filosofia da linguagem o que me parece mais
destacável. Ou seja o saber que domina todos os saberes por se referir ao que
as exprime a todas. Assim a destruição que caracteriza toda a ciência assenta
na destruição dela própria – dessa destruição. É o máximo do silêncio, não é
assim? Então o melhor é calar-me e olhar em sonolência o lume do fogão…
*
Que estranha sensação de me sentir
«liberto» de escrever literatura. Porque ninguém me obrigara a escrevê-la. E no
entanto é como se essa obrigação me viesse do desconhecido e só agora desse
conta dela precisamente por dela estar desobrigado. É porque me sinto livre,
que dou conta de ter estado obrigado. Não sentia a obrigação, mas sinto-a agora
na ausência dela. Como quem só dá conta de ter vivido num ambiente, depois de
ter saído dele.
Em todo o caso, uma velha ideia
regressa-me como a memória de uma paixão esquecida. Uma «história» sem
personagens. Ou só feita precisamente de «ideias» como uma biblioteca de livros
anónimos. Ou um jogo só dos ambientes como um jogo de cores num quadro
abstracto. Pensei-o quando comecei Aparição,
mas arrumei o projecto pela razão de que não poderia levar uma vida inteira a
escrever livros «abstractos». Valerá a pena retomá-lo, agora que só tenho
restos de futuro? No fundo podia ser apenas um poema em prosa.
E se voltasse ao ensaio «Um Dia de Verão»?
Abandonei-o há uns três romances ou quatro.
*
Gilo e Helena vieram almoçar. Fomos ao
«Aquário», ali a Janas,
que fica a uns dois ou três quilómetros. Tem um ar mais citadino que o Café do
Zé. E a diferença da civilização não se pagou mais caro. Gilo não se sente no
seu ambiente no Zé. Ambientámo-lo. Mas amanhã regressamos ao nosso elemento
natural. E deve haver menos decibéis do que hoje para maior naturalidade. E
iremos (talvez) a pé. E veremos as florinhas campestres das margens no ir e
vir.
VF
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