Que ponto mais alto me resume a vida
inteira? Em que ideia, situação ou imagem ela se investe de pacificação ou
encantamento? Que ideia resume ou resta de tudo o que pensei? É uma questão que
todo o homem se pode pôr. Ou em horas de solidão se terá posto. A vida é um
turbilhão de imagens e de acidentes e de ideias. Mas há decerto uma que resiste
ou a que vai dar a torrente das que por ele passaram. Por mim não tenho talvez
ideia final nenhuma, tenho só o que em emoção deslumbrada me ficou diante do
mistério e deslumbramento de tudo. É uma emoção que vai do mais extraordinário
espectáculo, como o que se me desdobra quando me deito entre os pinheiros de
Fontanelas e olho o céu nocturno de Verão, até à visão do mais vulgar e mesquinho
e quase invisível na sua vulgaridade como uma flor ou uma pedra. Não tenho uma
ideia que me salde a vida inteira, tenho só uma interrogação que não ousa e me
deslumbra de vertigem. Já uma imagem que me fixe a vida toda, não sei qual é. A
neve pela manhã ao abrir a janela e que subitamente descubro na extensão do horizonte
ou vejo cair no balancear silencioso e grave e gratuito como o voo de uma ave
ao entardecer. A balada da chuva no Inverno e a evocação dos caminhos
tenebrosos da Serra. A figura grácil de uma jovem de outrora que passa leve na
aragem e que morreu e que persiste instantânea no irreal desse passar. E uma
balada que a envolve e a transcende à eternidade do seu ser. (Interrompido)
*
Vai sair em França o meu Aparição
com um desvanecedor prefácio do Robert Bréchon,
esse grande amigo de Portugal, devoto de Pessoa, admirador da nossa literatura
em geral, de alguns poetas em especial como o Ramos Rosa,
poeta de merecimento ele próprio que em motivos portugueses encontrou alguns
temas para a sua poesia. E assim sendo, de novo me interroguei sobre o que
significará esse meu livro. Continuo a pensar que o seu tema é talvez bastante
original, sendo-o menos a realização estrutural do livro, a tendência para a
«tipificação» das personagens. Mas o tema. Antes de mais, o conceito de «aparição»,
de que já falei. Mas há no livro, ligado ainda a isso, um problema a que,
suponho, ninguém ainda se referiu e que é este: que significa a perversão a que
a evidência do «eu» leva os que a tiveram? Disse um dia que o querer desvendar
a arte até à sua radicalidade, é um acto sacrílego e por isso a arte se
degradou (ver Arte e Tempo). Como
afirmei também que toda a verdade, explorada até às últimas raízes, se dissolve
ou dissipa ou contradiz. Há assim que suster a investigação nos limites em que
se aguenta o seu equilíbrio. A revelação do «eu» é do homem e a sua ignorância
é do animal. Estará o equilíbrio entre os dois? Entre a evidência-revelação e a
ignorância ou inconsciência disso? Será enfim a vida humana plausível no
instável equilíbrio de tudo? Porque o problema estende-se a múltiplas situações.
A religião, o amor, a virtude, a lei, etc. A lei. Se nos perguntarmos em nome
de quê ela existe, que significa submetermo-nos a ela? (Ver Em Nome da
Terra). Mas não discorro mais e vou ouvir música. É mais útil e não tem
problemas de equilíbrio nenhum.
*
O Gilo deu-me uma droga para expulsar a
gasificação do meu excesso nervoso. E este meu corpo indecente recuperou a sua
verdade, sem os excessos do seu vazio. E eu penso assim que o próprio ar que
equilibra uma ave, naturalmente desequilibra o que é terrestre da sua condição.
Como o excesso de água me desequilibra e equilibra a fauna piscícola.
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