A Feira do Fumeiro de
Montalegre tem cada vez mais devotos. Aquilo parece uma peregrinação a Meca. Salvo seja, que os
muçulmanos não comem toucinho. Não comem eles, comemos nós. Eu e mais cinco,
harmonicamente divididos pelos dois sexos e três carros.
Dado que os restaurantes
de Montalegre, com razão ou sem ela, têm fama de, em dias de enchente, servirem
mal e caro, desviei os meus convidados para a «Casa
do Pedro», em Vilarinho
Seco.
Começávamos nós a
subir os Cornos das Alturas,
começou a nevar. A minha companheira torceu o nariz:
– Não iremos ficar
bloqueados?
Olhei o céu. As nuvens
iam altas e leves. Via-se bem que estavam de passagem.
– Não te preocupes.
Isto não é nada. Bota lá para Vilarinho Seco.
Chegámos já com a mesa
posta. Vieram as entradas, veio o vinho, veio a sopa, veio o cozido à barrosã,
veio a sobremesa. Tudo digno de bispos e réis, como costuma dizer um galego meu
amigo de longa data e apreciador da boa mesa. O Pedro nunca me desiludiu. Viva
o Pedro!
Findo o repasto, que
melhor ficaria chamar-lhe banquete, fomos brindados com um cafezinho a preceito
e respectivo bagaço de alambique próprio. Saímos de Vilarinho Seco aptos a
escalar o Larouco
de neve coroado.
Custou-nos a chegar a
Montalegre. Não por causa da neve, mas por causa do trânsito. Pior foi
descobrir sítio onde estacionar. Majores pennas
nido. A Vila começa a ter mais olhos do que barriga. Por fim lá conseguimos
e, sob o efeito do chicote do vento galego nas orelhas, corremos para a feira,
este ano em recinto novo. Mas os portões, apesar de largos, não davam vazão à
turbamulta. Aquilo parecia um macaréu de rio em luta com a preia-mar. Comecei a
ouvir um paso doble de muitos
olés. Meti ombros à contracorrente e fui desaguar num amplo e airosa átrio.
Achei bonito, sim senhor. Nem o pórtico do templo de Salomão.
Sobre um estrado, a Música de Parafita
puxava pelos metais. Mas o ambiente não lhe era propício. A boa música exige
silêncio. E do interior do pavilhão vinha um ingranzéu de ter lá parido a
galega.
Era a segunda vez que
ouvia a Música de Parafita neste princípio de ano. A primeira foi no pretérito
dia sete do corrente, festa de aniversário, para a qual os meus amigos
parafitenses, a quem saúdo afectuosamente, nunca se esquecem de me convidar.
«Às 11 horas, missa solene» – dizia o programa. Ia a contar com ela na capela
da aldeia. Afinal era na ermida de S. Romão.
Para quem não saiba,
como eu não sabia, o S. Romão é um templozinho de linhas helénicas, sobranceiro
a Parafita, a uns duzentos
metros a norte do povoado, no sentido da serra. Dado que as pernas já me não
ajudam muito, e aquilo sobe que tem diabo, pelo menos assim me pareceu, não
cheguei a tempo de receber a bênção do celebrante, o meu bom e ilustre amigo Reverendo
Padre
Manuel Alves, arcipreste de Valpaços. Mas muito a
tempo de assistir a um espectáculo inolvidável. Eu vinha a sair do templo,
virado a sul, e deparei com a Música alinhada à minha frente, o espelho da albufeira
dos Pisões ao fundo, a olímpica silhueta da Serra
das Alturas do outro lado e, por cima, a toda a largura do horizonte, um
céu limpo de nuvens. Simplesmente arrebatador. A um sinal do maestro, a música
arrancou. Os acordes foram subindo, ganhando amplitude, enchendo a vastidão do
espaço. Até os pássaros se calaram, a ouvir. Até as lágrimas me vieram aos
olhos.
Para a Música de
Parafita, desejara eu sempre um anfiteatro daqueles. Uma prega da montanha por
palco e a imensidão do firmamento por cúpula. Confinada num átrio, por maior
que ele seja, perde qualidade. Não obstante, aguentei a pé firme, aplaudi com
mão diligente. Neste ponto tocou o telemóvel. Era a cara-metade a reclamar a
minha presença do outro lado do pavilhão.
Subi mais uns degraus,
mergulhei num mar de gente. Num mar, repito, e explico porquê. O pavilhão é tão
grande, a gente era tanta, a vozearia tão intensa e difusa, que lembrava o
incessante marulhar das ondas na praia. Fui avançando, na esperança de
encontrar uma sereia que desse consistência à metáfora. Nisto vem de lá uma
senhora de braços abertos e sorriso largo:
– Posso dar-lhe um
abraço?
– Até um beijo, se
nisso tiver gosto.
– Também diz bem.
Beijou-me na face.
Correspondi.
– Você não me conhece
mas eu vou dizer-lhe quem sou. Lembra-se de me ter dado uma boleia entre Morgade e Carvalhais?
– De carro?
– A cavalo. Eu ia com
a minha falecida mãe, ambas carregadas, ela com um saco de batatas à cabeça, eu
com uma cestinha de ovos no braço. Mas eu já não podia com as pernas. Nisto
aparece você escachapernado num cavalo branco. Parece-me que ia ao vinho a casa
do Rego.
– Sim. Lembro-me de ir
algumas vezes ao vinho a casa do Rego.
– E não se lembra de
me ter dado boleia?
– Isso não.
– Pois foi. Disse para
a minha mãe: «Bote-me para cá o saco.» «Leva-me antes a menina.» «Bote para cá
tudo. O saco à frente, a menina atrás». A minha mãe passou-lhe o saco. Você
ajeitou-o à sua frente e disse: «Agora a menina.» Minha mãe içou-me para a
garupa do cavalo. «Agarra-te bem mim, não tenhas medo.» «Está bem» – respondi
eu toda concha. Há que anos isso vai. Você devia ter para aí uns quinze, eu
sete. Nunca mais me esqueci. Depois você desapareceu, acho que foi estudar, e
eu fui para a América. Aguardei uma vida inteira por este abraço.
– Foi pena não ter
vindo mais cedo.
– Não calhou. Era só
isto que lhe queria dizer. Aquela sua gentileza, cativou-me para o resto da
vida. Adeus.
A senhora afastou-se e
eu fiquei a pensar na importância dos pequenos gestos…
Bento da Cruz, PROLEGÓMENOS II
– Crónicas de Barroso (p. 78 e ss.)
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