O meu editor francês Joaquim Vital (que
é português…) esteve aqui em Lisboa há dias e durante o jantar falou-me de um
livro sobre Malraux
publicado por um filho. Mas ele não tinha agora filho algum, disse eu. Filho
adoptivo, disse-me ele. Mandou-me o livro. Estou a acabar a leitura. Mas antes
de dizer dele o que me parece, explico, depois do que li, a embrulhada da
família Malraux. O pai dele, chamado Fernand, casou duas vezes. Do primeiro
casamento nasceu o nosso homem, André Malraux. Viúvo, casou segunda vez e deste
casamento nasceram os dois meios-irmãos Roland e Claude. Claude foi fuzilado
pelos alemães aos 27 anos, solteiro, suponho. Roland morreu num campo de
concentração, deixando viúva uma pianista, Madeleine, e um filho Alain – que é
o autor do livro de que falo. André era casado com Clara e tinha dela uma filha
Florence (Fio para a família e amigos). Separando-se da mulher – que lhe não
deu o divórcio – André vive com Josette Clotis de quem tem dois filhos Vincent
e Gauthier. Josette morre num desastre ferroviário e André casa (?) com a viúva
do irmão Roland – Madeleine – que lhe cria os dois filhos de Josette com o seu,
Alain. A família é agora constituída por André, Madeleine, o filho desta e de
Roland – Alain – e os dois filhos de André e Josette – Vincent e Gauthier. A
vida da nova família é normal, com a prevista perturbação da presença do
«génio», reflectida na instabilidade da carreira de Madeleine como pianista. É
uma vida de grande fausto, decerto porque os direitos de autor de André devem ser
fabulosos. Apartamentos de luxo, viagens, férias fáceis em estâncias de alto
coturno e o mais. Um dia um amigo de Vincent oferece-lhe (imagine-se) um carro
de alto estilo desportivo para velocidades de vertigem. E numa viagem ao sul da
França com o irmão Gauthier e a que Alain não quis ou pôde associar-se, os dois
irmãos estampam-se e morrem no desastre. Malraux sofre um choque violento, mas
no dia seguinte ao do enterro, que acompanhou, apareceu numa reunião oficial do
Governo, a que pertencia. Espanto regelado de todos. Mas daí em diante a sua
vida transformou-se e a dissenção com Madeleine agravou-se. Aliás as suas
relações com a filha, a Fio (como com todos os amigos) foram sempre difíceis e
mal se viam durante largos períodos. E um dia, sem aliás qualquer contenda
explosiva, ordenou à mulher que se fosse embora. Ainda manteve contacto com o
sobrinho-enteado. Mas esse mesmo quebrou-se. Vou ler o que me falta do livro.
Mas a ideia que me ficou foi já a de um doente psiquiátrico, atravessado de
génio, loucura, megalomania, dureza para consigo e os outros, de uma ternura ocasional
mas reprimida, intempestivo, movendo-se normalmente numa órbita que não passava
pelo que a vida tem de quotidiano, obstinado – e tudo isso avivado ou distorcido
pelo álcool. Coincidência curiosa: a certa altura ele diz ao sobrinho seu biógrafo
«sou o maior escritor do século». E foi isto precisamente que eu escrevi na
dedicatória do exemplar de Aparição
que lhe enviei (em ’60). Tê-lo-ei despertado para essa convicção? Tê-lo-ei
confirmado nela? Hoje não sei se lhe escrevia isso, porque na distinção entre a
fulgurância das suas tiradas e a construção romanesca, eu teria de optar pela
primeira (e reincidiria) ou pela outra (e eu teria de optar por Proust-Joyce-Kafka).
Porque o meu ideal seria a fusão de uma e outra orientação. De todo o modo,
Malraux é sem a mínima dúvida o escritor mais profundo e fulgurante de todo o
século xx.
Ora bem. Mas que resta dele e de todos
os outros que se queiram para o Mundo que se abre diante de nós? Porque a
sensação que me toma é a de que tudo isso é um jatras, uma montanha de ferro-velho, de farraparia e inutilidade –
ou quase. Nós ainda nos não apercebemos bem de que toda a nossa ordenação da
vida se desorganizou. Mesmo a tragédia disso se anula em face do que não
sabemos mas tem já um toque de futilidade ou vazio ou quase ridículo como a
convulsão que nos agitasse em Tróia ou Salamina – ou o choro que lembramos de um
desgosto na infância, quando nos negaram uma guloseima que apetecíamos. A única
voz que nos pode falar ainda é a ausência dela no silêncio absoluto. Porque
todo o mundo terá de reorganizar-se e é um pouco infantil chorarmos hoje sobre
o que morreu em vez de simplesmente reflectirmos sobre como repô-lo em pé. E
deve ser por isso que instintivamente a amargura dos meus livros se tenta
recompor no riso (escuro) ou na ternura. Venho assim de há tempos escrevendo
fundamentalmente «histórias de amor». E uma tentação que se me esboça é
reescrever o Dafne e Cloé
de Longus. O amor primordial.
O amor da virgindade de se ser. A história de um Adão e Eva juvenis. Vou reler
o livro do grego. A ver se. De todo o modo, chorar mais, não. Reinventar a alegria
inicial. A que não sei ainda e apenas me maravilha. A que, aliás, pode estar de
acordo com uma serena melancolia. A ver, a ver.
*
O Alberto Silva
esteve aí há dias. E como de outras vezes eu lhe falava frequentemente de um
disco com o trio Odemira que sempre tocávamos pelo Natal, cheguei a pedir-lhe
que mo gravasse numa cassete. E decerto para me não ouvir mais falar do disco,
trouxe-mo. Eu lembrava-me de certa melodia que eu ainda entoava, lembrava-me da
mancha verde que o marcava ao centro com a indicação das várias canções
incluídas. Vi a bolsa em que vinha, vi o verde do centro e estremeci fortemente
a um abalo que me vinha do desconhecido e longínquo e comovente. E enquanto
estive no Porto, o Lúcio passou-mo a cassete para me não estragar a agulha com
a sua antiguidade cheia de rugas. E agora ouço-o, ouço-o. E Évora abre-se-me no
calor íntimo de uma amizade que a morte foi dissolvendo. Está uma noite gelada,
nós confluímos para a casa dos amigos Silvas, primeiro na cidade, depois na
Quinta da Soeira. Os nossos filhos são miúdos e a festa assim mais verdade
porque o Natal é de quem não acabou ainda de ser criança. E é o que estou sendo
ainda agora na doce e serena e leve melancolia de a recordar...
VF
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