Castril
O rio que
passa por Lisboa não se chama Lisboa, chama-se Tejo, o rio que passa por Roma
não se chama Roma, chama-se Tibre,
e aquele outro que passa por Sevilha também não se chama Sevilha, chama-se Guadalquivir… Mas o rio
que passa por Castril, esse, chama-se Castril. Qualquer lugar
habitado receberá logo o nome por que virá a ser conhecido, mas não assim os
rios. Durante milhares e milhares de anos, pacientemente, todos os rios do
mundo tiveram de esperar que alguém aparecesse por ali a baptizá-los para que
depois pudessem figurar nos mapas com algo mais que um traço sinuoso e anónimo.
Durante séculos e séculos as águas de um rio até aí sem nome passaram
tumultuosas pelo sítio onde um dia haveria de levantar-se Castril e, enquanto
iam passando, olhavam para cima, para a montanha, e diziam umas às outras: «Ainda
cá não está». E seguiam o seu caminho até ao mar pensando, com a mesma
paciência, que atrás de tempo, tempo vem, e que novas águas hão-de chegar que
já encontrarão mulheres batendo a roupa contra as pedras, crianças inventando a
natação, homens pescando trutas e o mais que ao anzol viesse. Nesse momento as
águas ficarão a saber que lhes foi dado um nome, que daí em diante serão, não o
rio Castril, mas o rio
de Castril, tão forte será o pacto de vida que passará a uni-lo à gente
que está levantando as suas primeiras e rústicas moradas nos socalcos da
encosta, e que depois construirá segundas e terceiras moradas, uma ao lado de
outras, umas sobre os restos de outras, gerações após gerações, até hoje.
Amansadas, retidas pelo muro gigantesco que fez com elas um lago, as águas do
rio de Castril já não saltam furiosas sobre as pedras, já não rugem como antes
entre as altas e apertadas paredes de rocha com que, durante milénios, a
montanha, inutilmente, quis estrangulá-las. O mesmo desenvolvimento que iria
fazer crescer e prosperar Castril domesticou a corrente. As contas entre o que
se terá ganho e o que se terá perdido, fá-las-ão melhor que ninguém os
castrilenses de raiz, eu só sou aquele português calado e discreto que um dia
apareceu por ali levado pela mão da pessoa a quem mais quer no mundo e que,
desde então, honrado algum tempo depois com o título de filho adoptivo da
terra, sobe e desce da povoação ao rio e do rio à povoação, passeia ao longo
das margens e pelos carreiros arcaicos que ainda conservam a memória dos pés
descalços que os pisaram, como se estivesse percorrendo outra vez, descalço ele
também, os caminhos da sua própria infância vivida em terras diferentes destas,
não de montanhas e de um rio capaz de cavalgar rochedos, mas de planícies e de
cursos de água vagarosos, o Tejo, o Almonda, toalhas de água
que reflectiam por um breve momento as nuvens que passavam no céu e logo as
deixavam porque outras vinham. Apesar do tempo, tanto, tanto, o velho que hoje
sou contempla com os mesmos olhos inocentes as montanhas e o rio de Castril,
as ruas estreitas e empinadas da povoação, as casas baixas, as oliveiras que
lhe recordam outras a cuja sombra se acolheu no passado e cujos frutos apanhou,
os caminhos entre ervas e flores, algum bicho assustado que corre a
esconder-se, deixando atrás o rápido estremecimento de uma planta roçada à passagem.
Algumas pessoas levam a vida à procura da infância que perderam. Creio que sou
uma delas.
José Saramago, O CADERNO
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