As cores da terra
As mãos,
quando trabalham a terra, confundem-se com ela. Há pintores que se acercam à
superfície do suporte com as mãos manchadas das cores da terra. Há pintores que
não podem nem nunca quereriam esquecer as cores da terra quando se preparam
para pintar um rosto, um corpo despido, o brilho de um cristal, ou nada mais
que duas rosas brancas numa jarra. A luz também existe para esses pintores, mas
apreendem-na como se ela lhes tivesse subido do interior da terra obscura. Ao
distribuí-la na tela, ou no papel, ou numa parede, o que eles fazem aparecer
são os tons surdos e quentes dos barros, os negrumes do húmus, o pardo das
raízes, o sangue do almagre. Pintam o humano e a sua contingência com as cores
da terra porque essas é que são as cores fundamentais, não as outras. De um
retrato que tenha sido pintado pelas cores da terra (como os pintava Cézanne) nunca se diga que
está parecido, diga-se, sim, que é idêntico, idêntico ao original, idêntico na
sua última substância: neste caso, a maior ou menor semelhança que seja capaz
de oferecer-nos será o que menos deva importar. Uma figura pintada com as cores
da terra terá sempre no rosto a inteireza áspera do sílex, nos cabelos os redemoinhos
que o vento desenha e move nas searas, e as mãos aparecer-nos-ão como se tivessem
acabado de erguer do chão os seus frutos mais profundos. As cores, todas as
cores, as da terra e as do ar, sempre procuraram as formas de que precisavam
para serem percebidas mais além da sua primeira manifestação. As cores foram
sempre o que desafiou ou conteve o ímpeto contraditório que se encontra
implícito nas formas, campo eterno de um conflito entre as agitações caóticas
da rebeldia e as passividades da submissão ao costume. Tudo isto será
certamente menos perceptível nas pinturas que, havendo-se proposto como
miméticas transposições do «real» aparente, aspiram, acima de tudo, a ser «reconhecidas»,
«identificadas», «classificadas», porém, essas, mais tarde ou mais cedo, acabam
por ser presas da acção desgastadora de um olhar que pouco a pouco as vai «neutralizando».
Pelo contrário, ao defender-se de formas facilmente identificáveis com as
representações comuns da realidade circundante, a arte abstracta, quer directa,
quer de opção tendencial, «resguarda» e «liberta», em princípio, a independência
relativa da cor, não a «estrangula» no aperto constringente de configurações
mais ou menos previsíveis ou de modelos social e consensualmente correctos. Não
foi por mera casualidade que utilizei a palavra «tendencial» como
característica de uma certa prática pictórica que, apesar de instalada sem
equívocos naquilo que, generalizando demasiado, chamamos arte abstracta, se
recusa a cortar completamente as pontes com o mundo dos signos e dos símbolos,
quer arquetípicos, quer modernos. Ela brotou espontaneamente no meu espírito
enquanto contemplava, de olhos deslumbrados e tomado por uma emoção poucas
vezes experimentada antes, as pinturas murais com que Jesús Mateo cobria as
paredes frias da igreja de San Juan
Bautista de Alarcón.
Era Jesús
Mateo um pintor abstracto «tendencialmente» realista? Ou, pelo contrário,
um pintor realista «tendencialmente» abstracto? E essas pontes de ligação a que
acima fiz referência seriam somente praticáveis para comunicar a arte «abstracta»
com os signos e os símbolos gerados nas diversas indagações de que a realidade
tem sido objecto, ou existiriam igualmente para comunicar a arte «realista» com
um universo de abstracções em contínua expansão? Pensei então que Jesús Mateo,
ao mesmo tempo que se havia libertado das ataduras condicionadoras de um
realismo estrito para se entregar a um trabalho sobre formas também elas «tendencialmente»
livres, embora em meu entender acatando sempre a lógica cromática, havia
logrado, graças à introdução inteligente e criteriosamente medida de signos e
símbolos sem custo identificáveis, fundir em uma expressão única, e quase diria
uníssona, como um coro a plenas vozes simultâneas, como um políptico
perspectivamente reunido em um só ponto de fuga, as enormes paredes que subiam
do chão arrastando consigo toda as cores surdas da terra para ir ao encontro
das cores luminosas do ar. Perante o ciclópico assombro, conceitos como
abstraccionismo e realismo perdem algo do seu significado autónomo corrente,
tornam-se mão esquerda e mão direita modelando em harmonia o mesmo barro. Não
sei se a igreja de San Juan Bautista de Alarcón virá a ser olhada como a Capela Sixtina do nosso
tempo, mas sei, tanto por ciência que creio certa como por intuição
divinatória, que o pintor Jesús Mateo
nasceu da mesma árvore genealógica que deu os seus melhores frutos em Hyeronimus Bosch e Brugel, o
Velho. Tal como eles, Jesús Mateo explicou o homem. Pelo visível e pelo
invisível.
José Saramago, O CADERNO
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