Aquilino
A obra
romanesca de Aquilino
Ribeiro foi o primeiro e talvez o único olhar sem ilusões lançado sobre o
mundo rural português, na sua parcela beiroa. Sem ilusões, porém com paixão, se
por paixão quisermos entender, como no caso de Aquilino sucedeu, não a exibição
sem recato de um enternecimento, não a suave lágrima facilmente enxugável, não
as simples complacências do sentir, mas uma certa emoção áspera que preferiu
ocultar-se por trás da brusquidão do gesto e da voz. Aquilino não teve
continuadores, ainda que não poucos se tenham declarado ou proposto como seus
discípulos. Creio que não passou de um equívoco bem intencionado essa
pretendida relação discipular, Aquilino é um enorme barroco, solitário e
enorme, que irrompeu do chão no meio da álea principal da nossa florida e não
raro deliquescente literatura da primeira metade do século. Nisso não foi o
único desmancha-prazeres, mas, artisticamente falando, e também pelas virtudes
e defeitos da sua própria pessoa, terá sido o mais coerente e perseverante. Não
o souberam geralmente compreender os neo-realistas, aturdidos pela exuberância
verbal de algum modo arcaizante do Mestre, desorientados pelo comportamento «instintivo»
de muitas das suas personagens, tão competentes no bem como no mal, e mais
competentes ainda quando se tratava de trocar os sentidos do mal e do bem, numa
espécie de jogo conjuntamente jovial e assustador, mas, sobretudo,
descaradamente humano. Talvez a obra de Aquilino tenha sido, na história da
língua portuguesa, um ponto extremo, um ápice, porventura suspenso, porventura
interrompido no seu impulso profundo, mas expectante de novas leituras que
voltem a pô-lo em movimento. Surgirão essas leituras novas? Mais exactamente,
surgirão os leitores para esse ler novo? Sobreviverá Aquilino, sobreviveremos
os que hoje escrevemos à perda da memória, não só colectiva, mas individual,
dos portugueses, de cada português, a essa insidiosa e no fundo pacóvia
bebedeira de modernice que anda a confundir-nos o sistema circulatório das
ideias e a intoxicar de novos enganos os miolos da Lusitânia? O tempo, que
tudo sabe, o dirá. Não percebemos que, desleixando a nossa memória própria,
esquecendo, por renúncia ou preguiça mental, aquilo que fomos, o vácuo por esse
modo gerado será (já o está a ser) ocupado por memórias alheias que passaremos
a considerar nossas e que acabaremos por tornar únicas, assim nos convertendo
em cúmplices, ao mesmo tempo que vítimas, de uma colonização histórica e
cultural sem retorno. Dir-se-á que os mundos real e ficcional de Aquilino morreram.
Talvez seja assim, mas esses mundos foram nossos, e essa deveria ser a
melhor razão para que continuassem a sê-lo. Ao menos pela leitura.
José Saramago, O CADERNO
Sem comentários:
Enviar um comentário