Siza Vieira
Toda a
arquitectura pressupõe uma determinada relação entre a opacidade natural da
maioria dos materiais empregados e a luz exterior. Os grossos muros românicos abriam-se
dificilmente para que a claridade do dia movesse, num espaço que parecia
recusá-las, as sombras que precisamente iriam dar-lhe sentido. A sombra é o que
permite fazer a leitura da luz. O gótico rasgava-se verticalmente em vitrais
que, dando passagem à claridade, ao mesmo tempo a matizavam para resgatar no
último instante o efeito misterioso da penumbra. Mesmo nos modernos tempos,
quando a parede é, em grande parte, substituída por aberturas que quase a
anulam, que a fazem desaparecer em absurdos revestimentos de vidro que diluem
os seus próprios volumes num processo de caleidoscópicas reflexões e
projecções, a necessidade de apoio de que o olho humano não pode prescindir
procura ansiosamente um ponto sólido onde possa descansar e contemplar. Não conheço
na arquitectura moderna uma expressão plástica em que o primórdio da parede
seja tão importante como na obra de Siza Vieira. Esses muros
longos e fechados surgem, à primeira vista, como inimigos inconciliáveis da
luz, e, ao deixarem-se finalmente perfurar, fazem-no como se obedecessem
contrariados às inadiáveis exigências da funcionalidade do edifício. A verdade,
porém, segundo entendo, é outra. A parede, em Siza Vieira, não é um obstáculo à
luz, mas sim um espaço de contemplação em que a claridade exterior não se detém
na superfície. Temos a ilusão de que os materiais se tornaram porosos à luz, de
que o olhar vai penetrar a parede maciça e reunir, em uma mesma consciência
estética e emocional, o que está fora e o que está dentro. Aqui, a opacidade torna-se
transparência. Só um génio seria capaz de fundir tão harmoniosamente estes dois
irredutíveis contrários. Siza Vieira é esse taumaturgo.
José Saramago, O CADERNO
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