E pur si muove
Com os dados da sondagem ainda quentes, o jornal El País
já me estava a pedir um comentário sobre a eventual união dos povos que compõem
a Península
Ibérica. O que vem a seguir é o que enviei a Madrid acerca deste melindroso
assunto. Melindroso, delicado, polémico e conflitivo assunto em que não tem
sido impossível chegar a acordo ao menos para discuti-lo seriamente.
«E no entanto
move-se». Estas palavras tê-las-ia dito num sussurro quase inaudível Galileu Galilei ao
terminar a leitura da abjuração a que havia sido forçado pelos inquisidores-gerais
da Igreja Católica
em 22 de Junho de 1633. Tratou-se, como se sabe, de obrigá-lo a desmentir,
condenar e repudiar publicamente o que tinha sido e continuava a ser sua
profunda convicção, isto é, a verdade científica do sistema coperniciano, segundo
o qual é a Terra que gira à
volta do Sol e não o Sol à volta
da Terra. O estudo do texto da abjuração de Galileu deveria fazer-se com a
conveniente atenção em todos os estabelecimentos de ensino do planeta, fosse qual fosse a
religião dominante, não tanto para confirmar o que hoje já é uma evidência para
toda gente, que o Sol está parado e a Terra se move ao redor dele, mas como
maneira de prevenir a formação de superstições, lavagens de cérebro, ideias feitas
e outros atentados contra a inteligência e o senso comum.
Não é, porém,
Galileu o objecto primeiro deste texto, mas algo mais próximo de nós no tempo e
no espaço. Refiro-me ao Barómetro
Hispano-Luso do Centro de Análise Social da Universidade de
Salamanca, hoje publicado, sobre as eventuais possibilidades de criação de
uma união entre os dois países da Ibéria com vista à formação
de uma Federação hispano-portuguesa. Os leitores que acompanham regularmente
estes e outros comentários meus estarão lembrados da polémica, adornada com uns
quantos insultos escolhidos e umas quantas acusações de traição à pátria, que o
meu prognóstico de uma união desse tipo suscitou há tempos. Ora, de acordo com
a sondagem da Universidade de Salamanca, 39,9% dos portugueses e 30,3% dos
espanhóis apoiariam essa união. As percentagens mostram um sensível avanço,
quer num país quer no outro, em relação a cálculos feitos nessa altura. Os que
rejeitam a ideia constituem um pouco mais de 30% das pessoas consultadas, isto
é, 260 dos 876 cidadãos para o efeito entrevistados nos meses de Abril e Maio
deste ano.
Ao contrário
do que geralmente se diz, o futuro já está escrito, nós é que não temos ainda a
ciência necessária para o ler. Os protestos de hoje podem tornar-se em concordâncias
amanhã, também o contrário poderá suceder, mas uma coisa é certa e a frase de
Galileu tem aqui perfeito cabimento. Sim, a Ibéria. E pur si muove.
José Saramago, O CADERNO
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