Aparências
Suponho que
no princípio dos princípios, antes de havermos inventado a fala, que é, como sabemos, a
suprema criadora de incertezas, não nos atormentaria nenhuma dúvida séria sobre
quem éramos e sobre a nossa relação pessoal e colectiva com o lugar em que nos
encontrávamos. O mundo, obviamente, só podia ser o que os nossos olhos viam em
cada momento, e também, como informação complementar não menos importante,
aquilo que os restantes sentidos – o ouvido, o tacto, o olfacto, o gosto – conseguissem perceber
dele. Nessa hora inicial, o mundo foi pura aparência e pura superfície. A matéria
era simplesmente áspera ou lisa, amarga ou doce, azeda ou insípida, sonora ou
silenciosa, com cheiro ou sem cheiro. Todas as coisas eram o que pareciam ser
pelo único motivo de que não havia qualquer razão para que parecessem e fossem
outra coisa. Naquelas antiquíssimas eras não nos passava pela cabeça que a
matéria fosse «porosa».
Hoje, porém, embora sabedores de que desde o último dos vírus até ao universo, não somos mais do
que organizações de átomos
e que no interior deles, além da massa
que lhes é própria, ainda sobra espaço para o vácuo (o compacto absoluto
não existe, tudo é penetrável), continuamos, tal como o haviam feito os nossos
antepassados das cavernas, a
apreender, identificar e reconhecer o mundo segundo a aparência com que se nos
apresenta. Imagino que o espírito filosófico e o espírito científico,
coincidentes na sua origem, deverão ter-se manifestado no dia em que alguém
teve a intuição de que essa aparência, ao mesmo tempo que imagem exterior
capturável pela consciência e por ela utilizada, podia ser, também, uma ilusão
dos sentidos. Se bem que habitualmente mais referida ao mundo moral que ao
mundo físico, é conhecida a expressão popular em que aquela intuição veio a plasmar-se: «As aparências
iludem.» Ou enganam, que vem a dar no mesmo.
José Saramago, O CADERNO
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