sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Os Cordoeiros: Quarta-feira, Janeiro 28 [2004]

Silêncios

Sr. Cordoeiro-Mor

Às vezes, o melhor é não dizer nada. Calar esse desacordo com o mundo. Pensar que a Justiça é um despropósito dos tempos. Fingir que se finge é uma boa actividade social. Ninguém nos leva a sério, mas também ninguém nos cobra o que quer que seja. Sem débitos nem créditos, a vida flui e não há surpresas. Há um tempo para dizer o indizível. Um tempo em que não precisamos do anonimato, seja para chorar, seja para invectivar. Foi o Eugénio, tão lembrado hoje neste blogue, que escreveu já gastámos as palavras, meu amor. Ou algo semelhante. A memória já não é o que era. Nem a memória nem a esperança. Uma e outra perdem-se com os dias que correm. Nos tribunais não se oficia a Justiça, despacham-se os preconceitos. É o que penso quando estou pessimista. O que é raro. Ao fim e ao cabo, somos o que as palavras nos permitem. Mesmo no mais imponderado dos silêncios. No dia em que soubermos substituir os códigos por dicionários, não mais haverá conflitos ou pedidos reconvencionais. Às vezes, o melhor é dizer tudo não dizendo nada.

Cord(i)almente

Alípio Ribeiro
# posto por til @ 28.1.04

Censura - Efeméride

28/1/74 (23,20). «Soldado que queria pegar fogo à mulher e aos filhos - CORTAR. Dr. Ornelas.»

César Príncipe, Os Segredos da Censura

Sondagem

A revista Le Point perguntou aos franceses o que pensavam da justiça. Os resultados:
60% - tem uma má opinião sobre o funcionamento da justiça;
64% - estima que ela não é eficaz;
89% - considera que ela é lenta.

Estes dados serão mais facilmente compreendidos se se disser que apenas 9% das 5,4 milhões de queixas apresentadas ao Ministério Público, em 2002, tiveram tratamento.
***
TEXTO DE REFERÊNCIA:
Rapport de M. Alvaro Gil-Robles, Comissaire aux Droits de l’Homme, sur sa visite au Portugal du 27 au 30 Mai 2003
# posto por til @ 28.1.04

Manet e Velásquez

Las Meninas (1656)
Diego Velasquez (1599-1660)

No El País de ontem, IAN GIBSON referia, a propósito da exposição Manet en el Prado, que o pintor francês visitou Madrid em 1865, fazendo o trajecto desde Paris no novo comboio directo, para passar muitas horas a contemplar as telas de Velásquez, sobre tudo Las Meninas, obra que o fascinou pela sua mestria técnica, pelas suas luzes e sombras, pelo seu enigmático espelho, e que o fez reflectir sobre a metáfora da vida como sonho, como engano. A partir daí, Manet mudou radicalmente a sua maneira de ver e entender o mundo.
Quase vinte anos depois – corria o ano de 1882 –, Manet, já muito doente e sem esperanças de vida, quis prestar uma homenagem póstuma ao génio andaluz, que considerava seu mestre, e dedicou-lhe Un bar aux Folies-Bergère, obra duramente atacada pelos críticos parisienses pela liberdade óptica que encerra.
Aqui fica mais um quadro para comparação com o anterior.

L.C.
***
TEXTOS DE REFERÊNCIA:
Report of the Inquiry into the Circumstances Surrounding the Death of Dr David Kelly C.M.G. by Lord Hutton

Recommandation n° R (2000) 7 du Comité des Ministres aux Etats membres sur le droit des journalistes de ne pas révéler leurs sources d'information
# posto por Rato da Costa @ 28.1.04

As palavras


São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade
# posto por Rato da Costa @ 28.1.04

Palavras II

"... Entre os eruditos, os jurisconsultos reivindicam o primeiro lugar, pois não há gente mais vaidosa. Rolam assiduamente a pedra de Sísifo, revolvendo seiscentas leis para interpretar um assunto a que eles se não referem, acumulando glosas sobre glosas, opiniões sobe opiniões, trabalhando assim para que pareça muito difícil o estudo a que se dedicam. Estimam que é meritório e preclaro tudo quanto é laborioso... Mas além de serem linguareiros são também rixosos, digladiam-se pertinazmente por uma questão de lã caprina..." - Século XV, Erasmo de Roterdão, no Elogio da Loucura.
Há coisas e análises que duram séculos. Vejam os Acs. dos tribunais superiores e de outras instâncias, nomeadamente os pareceres do CC. Leiam as Colectâneas (só uma por questão de sanidade mental), os DR e outras publicações. Onde está a justiça de todo aquele exibicionismo? Para que serve aquilo? Os destinatários entendem alguma coisa? Às vezes nem percebem, com tamanha erudição, se foram condenados ou absolvidos, precisam de um intérprete especializado na matéria e... mesmo assim.
Daí, ou também daí, a oportuna chamada de atenção do Alípio
Pinto Nogueira.

AS PALAVRAS SÃO O OFÍCIO DO POETA
Quanto a mim gosto das palavras que sabem a terra, a água, aos frutos do Verão, aos barcos no vento; gosto das palavras lisas como os seixos, rugosas como o pão de centeio. Palavras que cheiram a feno e a poeira, a barro e a limão, a resina e a sol.
Foi com essas palavras que fiz os poemas. Palavras rumorosas de sangue, colhidas no espaço luminoso da infância, quando o tempo era cheio, redondo, cintilante. As palavras necessárias para conservar ainda os olhos abertos ao mar, ao céu, às dunas, sem vergonha, como se os merecesse, e a inocência pudesse de quando em quando habitar os meus dias. As palavras são a nossa salvação.


de Eugénio de Andrade
# posto por Rato da Costa @ 28.1.04

Palavras

Sr. Cordoeiro-Mor

O que os magistrados ainda não compreenderam é que a realidade é mais rápida do que a sua capacidade de adaptação. Se assim é, torna-se urgente que definam estratégias que lhes permitam não serem atirados para o canto da história. Estratégias que têm a ver com a inteligibilidade e a credibilidade do exercício das suas funções. Fazer uma justiça de proximidade é respeitar a inteligência dos cidadãos.
É evidente que a justiça não é administrada para agradar urbi et orbi. Não é uma benção nem oferece a redenção. Mas tem, nos limites dos seus propósitos, uma função cicatrizante: a de ordenar a desordem, ou, pelo menos, a de tornar verosímil a dúvida. A justiça não garante a verdade mas tem de garantir o direito. Poderia aqui aplicar-se o adágio antes direito que me leve do que verdade que me derrube.
Corro o risco de, sendo críptico, pensarem que não quero dizer coisa nenhuma. Que é o que se passa com muitas das decisões judiciais. Adiam as soluções ignorando que, ao adiá-las, adiam o tempo. E adiar o tempo é ajudar a matar a vida.
Os tribunais lidam com a vida. Essa coisa mesquinha, sórdida e, muitas vezes, impublicável. Ou deveriam lidar. Não é raro que, ao folhear-se um processo, o que se encontre sejam palavras. E palavras. E palavras. Escrever menos e dizer mais não justificará a sobrevivência. Mas, com certeza, democratizará a justiça.

Cord(i)almente

Alípio Ribeiro
# posto por til @ 28.1.04

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